domingo, 30 de novembro de 2014

O ESTUPRO NOSSO DE CADA DIA

Sem violência, de que viveriam os hipócritas
De plantão, no rádio e na televisão,
Em cotidiano exercício de estudada indignação,
Atentos aos índices de audiência?

Sem sangue, com que alimentar os programas,
Fazer as pontes entre os momentos comerciais,
Vampirescamente alimentando o medo e a raiva,
Preparando o rebanho para o pasto do estupro
Que se anuncia nas ruas e na mídia, em tudo?

Como sensacionalizar sem cadáveres, atrair a si
A atenção, se não houver uma desgraça pronta,
Pelo menos um assalto ou saidinha de banco,
Um furto, qualquer quebra da normalidade?

Mais que epidêmica, a violência é endêmica,
Opção cultural, modus vivendi, motor social
Que produz lucro e cria fortunas, sustenta
Um Estado paralelo mergulhado na pujança
Alimentada no self service da indignidade.

Entre tiros e velórios, soberanos e absolutos
Reinam bandidos e policiais, milicianos,
Advogados, juízes, políticos, jornalistas...
Todos iguais porque com interesses comuns,
Com lugares determinados e específicos
Na hierarquia dos crimes, pão nosso,
Transformando os que os sustentam
Em réus aguardando a execução.

Francisco Costa

Rio, 30/11/2014.
Mordaz e crítico,
O demônio que me sopra poemas,
Imune a exorcismos,
Está sempre de plantão, insaciável,
Me possuindo.

Tudo é mote para escrita,
Motivo para versejar, automático,
Sem ter como me livrar da desdita
De me fazer obscuro, enigmático.

Cúmplice nas camas,
Comparsa nos palanques,
Sócio nos pensamentos,
É ele que dá o tom
E escolhe as palavras,
Reduzindo-me a olhos e mãos
Digitando a identidade
Com demônios outros
Morando no peito de toda a gente,
De cada um.

Querendo-se importante e diferente,
O meu demônio é trivial, comum.

Francisco Costa

Rio, 30/11/2014.
Tonto coração,
Criterioso na escolha de impossibilidades,
Do que se anuncia distante e inacessível,
Em ardentes desejos de só desejos,
Nascidos para a irrealização.

Insano coração,
Pondo olhos no que não pode,
Farejando o proibido, lancinando-se
Em vazios de difícil preenchimento:
Aquela mulher casada,
Aquela mulher distante,
Aquela mulher imune a abordagens,
Em recital único de sonoro não.

Demente coração,
O que não se basta quieto,
Dá para consultar o cérebro?
O pênis é péssimo conselheiro.

Covarde coração,
Limitado e sem autonomia,
Idiota e sem noção, só emoção,
Porque tinha que me arrastar,
Alienando-me da razão?

Francisco Costa

Rio, 30/11/2014.

VIOLÊNCIA E FÉ

Privilégio morrer de velho,
Ter biografia completa,
Inaugurar descendentes.

De plantão, a morte espreita,
E chega, insopitável,
Nas mãos das crianças,
Na cintura da polícia,
Na vigilância da milícia,
Vestida de narcotráfico
E corrupção.

Nas ruas das cidades sobrevivemos,
Nos esquivando de tiros, drogas,
Dos políticos de plantão,
Amealhando fortunas com a situação.

Nas igrejas os inocentes pedem
E doam para bandidos outros
Miliciando a fé, dopando
Consciências e determinações,
Contabilizando à conta de Deus
E de demônios o que é cesariano,
Perfeitamente humano.

Como em toda guerra,
Que mata cabo e soldado
E poupa o general,
Nesta só morrem os pobres,
Para reforço do capital.

Cotidianamente abatidas,
Cercadas por coiotes e lobos,
As ovelhas pacientemente esperam
Que Deus lhes construa cercas,
Acreditando que a fé remove montanhas,
Mesmo sem jamais terem visto
Uma montanha removida.

Cínicos e travestidos de santos
Os empresários das cercas colaboram,
Amealhando os dízimos do desespero.

Francisco Costa

Rio, 30/11/2014.

sábado, 29 de novembro de 2014

18:30 h

É agora, quando a penumbra cobre copas
E as árvores se exilam no anonimato,
Levando as cores e os pássaros,
Que me possuo por inteiro, integral,
Em duelo com as lágrimas.

Agora é quando os meus mortos acordam
E me oferecem a infância de volta,
E cada mulher, hiato entre solidões,
Insiste em me lembrar que se foi
Sem levar pelo menos o meu corpo.

Agora, exatamente agora, noturnas,
É que minhas dores acordam bem dispostas,
Em ânimo febril de me habitarem calado,
Mascando-as lenta e pausadamente,
Para mais sorver o sabor.

Seis e meia, hora do meu despertar sozinho,
De corpo baldio e alma devoluta,
Aguardando posse.

Seis e meia, momento triste
Em que os ponteiros fogem do relógio e,
Impiedosos, se cravam em mim,
Cadáver consciente esperando reencarnar
Na manhã seguinte.

Francisco Costa

Rio, 29/11/2014.

EU, ESTRESSADO?

Uma amiga comenta que sou estressado,
Mas que logo me recupero em versos.

Estressado, eu? Só porque a prestadora
Oferece dez por cento da velocidade contratada,
E mandasse uma mensagem numa caravela
Eu me conectaria mais rápido com Portugal?
Sem contar a mãe do meu filho, em exigências,
Me chamando de sovina e desnaturado
Porque a pensão não paga a prestação do carro,
Os micos invadiram o viveiro, comeram tudo,
Todos os meus periquitos (conforta-me saber
Que com amiga minha foi muito pior,
Comeram a periquita), e me colocaram
Em 89487637595 grupos, sem autorização,
E agora me vejo entre poetas, filósofos,
Botânicos, no clube das noivas, de culinária,
“no fascismo em foco”, “nazismo para crianças”,
E até na página de “como caçar ratos”, embora
Eu ainda acredite que a maneira mais frutífera
É criando uma Comissão Parlamentar de Inquérito,
O natal chegando, jingle Bell/jingle Bell/
Ai meu Deus do céu! O lagarto comeu o pinto,
Não o meu, o da minha galinha de estimação,
Cai o sinal da net, cai chuva, cai a Bolsa,
E o meu medo é esse, essa idade... Vai cair...
E ainda me acham estressado por reclamar
Dessa desgraceira que,
Mais que deixar de luto,
Me deixa puto!
kkkkkkkkkkk

Francisco Costa

Rio, 29/11/2014.
Falo-vos do que não cabe em pouco
E pouco habita no pequeno, acanhado,
Nascido para romper as amarras de tudo
E em tudo se fazer presente para mudar,
Indômito e dócil ao que exige e impõe.

Falo-vos da impertinência, da rebeldia,
De instintos primários alçando-se voo,
Opção nova e fundamental de mudança,
Urgência posta na mesa das carências
Que se expõem cotidianas e normais.

Falo-vos do que embora imenso, enorme,
Apequena-se no uso fruto do temporário,
Amesquinhado quando com parâmetros,
Limites, tamanho fixo e determinado,
Em trânsito de mão inversa, para o nada.

Falo-vos do que transcende e impulsiona,
Este segredo ainda não revelado, secreto,
Mostrando-se em seus feitos e efeitos,
Sem que ninguém o explique ou entenda,
Limitados apenas a ser presa ou predador.

Falo-vos... Eu vos falo do amor.

Francisco Costa

Rio, 29/11/2014.

IDH


Poucos quilômetros nos separam
E em comum temos o jota.
Tu moras no Joá, eu moro em Japeri.
Tu tens a nota máxima no IDH,
Insuperável em qualquer lugar,
Inalcançável no mundo.

Eu me movo em lama e esgoto,
Amanhecendo em noturnas dores
Cultivadas em tudo o que me falta,
Cultivando o pior IDH possível.

Tu crias futuros donos da gente,
Moços perfumados, empinados
No poder e na importância.
Eu crio mortes prematuras,
Quereres insatisfeitos, carências
Invalidando a inocência e a infância.

Tu votas, eu voto; tu moras, eu fico.
Tens na sala o mar que invade a janela,
A Floresta da Tijuca cheirando na sala,
Policiais nos apartando, regalias,
Dotes que se consumam fartura.

Eu tenho monturo de lixo e mosquitos,
Viroses, paisagens de aridez e medo.
O mesmo jota que te sacia me atiça,
O jota de Judiaria, Juntos, Justiça.

Francisco Costa
Rio, 26/11/2014.

IDH =  Índice de Desenvolvimento Humano.

Para os amigos não cariocas entenderem o poema: Joá é um bairro incrustado na Barra da Tijuca, próximo à Ipanema e Copacabana, com o maior IDH do mundo, e Japeri é um município do Grande Rio, com IDH padrão Etiópia. Só cinquenta quilômetros os separam.

ATO DE FÉ

Perc orro um longo e intricado labirinto,
Feito de caminhos sem fim, becos,
Retornando sempre ao mesmo ponto,
Ao meu início, sem encontrar o fim.

São alamedas, algumas largas, iluminadas,
Margeadas por luz e flores, brisa morna,
Em oposição às escarpadas, sinuosas,
Sem margens por que só de sombras.

Sem ver uma saída, redobro- me força
E sempre começo o recomeço, em ânsia,
Esperança de que termine logo adiante.

Ao meu lado uma voz sem rosto, só voz,
Insistente, quase monótona, repetindo:
Volta e tenta de novo, mais um vez,
Até descobrir que a verdade é isso:

Percorrer-se em cada meandro e trilha,
Descobrindo-se a cada nova passagem,
Até ter todo o caminho percorrido,
Quando nascerás lúcido do lado de fora,

Para experimentar a paz e o conforto,
E se descobrir lúcido e leve, vivo,
Quando todos os que permanecem
Em seus próprios e intricados labirintos
Dirão com certeza que estás morto.

Francisco Costa

Rio, 28/11/2014.
Vai mudar a estação,
Preciso aprontar a safra de verão:
Expor-me ao sol, estocar luz,
Permanecer atento às cores
Que brotarão abundantes e claras.

Os anos repetem os corações:
Contraem-se nos invernos
E primaveras, expandem-se
Nos outonos e verões.

Eis que chega o tempo de abraços,
De palavrório gratuito nas praias,
De suar corpos em camas,
De amar tudo e tanto
Que como se não experimentado antes.

Vai fazer verão,
Temporada de romper casulos
E se alar em sonhos.

Francisco Costa

Rio, 29/11/2014.
Eu, o que só aposta no improvável
E procura o inacessível,
Impaciente na espera,
Mais não posso que a decepção.

Vivo em mundo paralelo,
Perfeito porque apenas idealizado,
Flutuando no espaço das realizações.

Ocasionalmente exilo-me na realidade,
Cultivando insatisfação tanta
E tanto inconformismo
Que o retorno só se torna possível
Comigo me livrando do lastro,
Reduzindo a bagagem,
O que faço deixando versos.

Minha poesia é isso,
Bagaço do vivido,
Corda que ata o aqui e o agora
Com o que teria sido possível.

Impotentes para mudar o mundo,
As borboletas apenas voam.

Francisco Costa

Rio, 29/11/2014.
Este vazio abissal,
Vácuo de vontades
Silenciadas, mortas,
Apontam novo poema.

Vou agora despir-me
Dos interesses imediatos,
Do que me artificializa
E tem solução possível,
Das dores menores
E tudo o que pesa fácil.

Preciso ficar leve, fluido,
Longe de mim distraído,
Com a caneta na mão.

Este vazio abissal,
Vácuo de vontades
Silenciadas, mortas,
Apontam que vou voar
No espaço de mim,
Nas asas da inspiração.

Francisco Costa

Rio, 27/11/2014.

ESPALHA BOSTA

Eu, o espalha bosta,
O que nasceu para a dissidência,
Para desafinar no coro dos acomodados,
Semeando dúvidas, procurando respostas.

Eu, o impróprio à quietude, à placidez
Das águas mornas e sem ondas, paradas,
Sem riscos, ridículas em sua monotonia.

Eu, o que só existe destoando,
Atrapalhando tudo,
Invertendo a mão,
Contaminando o resto.

Eu, menstruação na lua de mel,
Gargalhada em velório,
Culto evangélico no inferno,
Um arroto no restaurante de luxo.

Eu, o que atravessa o ritmo e a estrada,
O que chove no piquenique alheio,
Um orgasmo precoce no colo da donzela,
Nasci para incomodar, para acordar marasmos,
Apontar a nudez do rei, detonar os quietinhos.

Ojerizam-me as reses apascentadas,
Em formação no rebanho,
Submissas ao cajado do pastor,
Votando no candidato indicado
E fazendo tudo o que o seu mestre mandar.

Ah, bichinho de estimação dos donos da gente,
Instrumento de perpetuação do que aí está,
Levanta! Sai da catacumba que você construiu,
Cômoda e aparentemente inexpugnável morada.

Venha comigo, vamos sacanear o mundo,
Ficar nu na praça, tirar meleca na esquina,
Mostrar o pinto para a beata, e rir, rir muito,
De tudo e de todos os que rirem de nós,
Até você entender que se é um espalha bosta
É porque o bosta não é você.

Francisco Costa

Rio, 24/11/2014.

DECLARAÇÃO

De tudo só ficou o silêncio,
Essa abissal impressão do nada,
Um vazio de séculos, infortúnio
Que se degrada autocomiseração,
Para mais doer e incomodar.

O silêncio da folha em ausência de brisa,
De lábios crispados, da imobilidade
Posta em qualquer vontade, um grito
Morto antes de nascer, um espasmo.

É a loucura consciente, o saber-se vivo,
Com o metabolismo ativo, em provimento
Às atividades que não sustentam emoções,
Todas elas mortas, inativas, ausentes,
Levadas pelo que o tempo não devolverá.

Inconsciente e determinada, senhora de si,
Aquela mulher me levou. Agora, aqui,
Ruínas do que eu era, escombros de mim
Choro a saudade do que fui.

Francisco Costa

Rio, 27/11/2014.
Compliquei.
Eu poderia ter sido um lavrador,
Revolvendo a terra e as manhãs,
Cultivando cores e comida,
Contaminando com plantas.

Talvez aquele carroceiro na estrada,
Atravessando o espaço e o tempo,
A vida, puxado por um burro.

Quiçá um pescador,
Sonhando fartos cardumes,
Em concorrência com as gaivotas,
Colhendo carnosos corpos no mar.

Quem sabe só um menino sentado,
Sonhando com lavras, carroças,
Pescarias, perdido e tristonho,
Entre o que queria e o que é,
Um lavrador de palavras
Em carroças poemas
Pescando sonhos.

Não fosse a poesia
E a vida seria
Uma longa noite
Com todos dormindo.

Francisco Costa

Rio, 29/11/2014.

EM ATO DE GRATIDÃO

Bendigo a cada uma que chegou,
Repetição de diferenças
Em desafio a minha superação.

Algumas me chegaram lentas e desconfiadas,
Certas de que momentâneo prazer,
Alimentos da curiosidade insaciável
Impedindo repetições porque conhecidas.

Outras vieram como acordes de violinos,
Ora em falsete, ora em solo sólido, encorpado,
Alçando-se acima da orquestra, absolutas,
Reduzindo tudo o mais a contraponto delas.

Houve as inapreensíveis, misteriosas
Incógnitas exigindo decifração urgente,
Compondo teoremas de luxúria e loucuras,
Para logo quedarem-se mudas e ausentes.

As ornamentadas de si próprias, lindas
Quando despidas das roupas e do pudor,
Inaugurando inesquecíveis imagens,
Com tudo o mais coadjuvando carne.

As tontinhas, desajeitadas e faladeiras,
Naturais e discretas como um camelo
Dormindo no estacionamento do shopping,
Autobiografando-se no primeiro encontro.

As possessivas , armadas em zelo e vigilância,
Contabilizando a minha respiração,
Os batimentos cardíacos, cada piscar de olhos,
A cata de indícios do inexistente, irritando.

Muitas mais eu citaria, se espaço houvesse,
Mas interrompo-me, gratificado,
Paginando o que nunca compreendi
Porque complexo e exatamente perfeito.

Então louvo-as repositários de versos,
Mananciais de palavras, córregos de signos,
Encantadas fontes onde nasceram os meus poemas.

Francisco Costa

Rio, 28/11/2014.

CHORANDO NA CHUVA

Ao contrário do que pensam,
Quando longe dos versos e da net,
De palestras, aulas e conferências,
Do discurso político e da evidência,
De tudo o que desgasta e suprime,
Tentativas de preencher um vazio
Que insiste, apesar de tudo,
Não me possuo em livros
Ou me assumo em ideias alheias.

Dispo-me da fantasia já gasta,
Antinatural e impositiva,
Quase compulsória, obrigatória
Neste carnaval que é a vida,
E sintonizo um canal rural,
Quando não vou à estufa
Ou cultivo o anonimato na roça.

E se a felicidade existe e é acessível,
Ela chega comigo no portão,
Desgrenhado e sujo de terra, suado,
Diante de um desconhecido
Pedindo que eu chame ou dê recado
Ao professor Francisco.

Aí, ovelha fora do aprisco,
No portão, próximo ao jardim,
Descubro onde errei:
Criei um patrão em mim.

Francisco Costa

Rio, 29/11/2014.

domingo, 23 de novembro de 2014

POEMA SOMBRIO

“A mão que toca um violão
Se for preciso faz a guerra...”
(Marcos e Paulo Sergio Valle)

Não me peçam parcimônia nas críticas,
Comedimento nas palavras,
Parcialidade na dor.

Eu vejo carniça, ossadas, sangue
Jorrando farto sobre o solo do sertão.
Eu vejo nódoas e manchas, máculas
Empesteando o que foi verde e claro
E se transmutou cinzas e carvão
Esperando o vento, o tempo,
Com o passaporte para o nada.

Eu ouço gemidos, sons de máquinas:
Tratores, motosserras... E da dinamite
Corroendo as vísceras da terra a mostra,
Saqueada em suas riquezas intestinas
Para se maquiar bastardas fortunas
Nas mesas de poucos privilegiados.

Eu conheço essa gente que caminha
Como uma palmeira, sem sair do lugar,
Sujeita à chuva e ao sol inclemente,
Vergando-se heroína para subsistir.

Sou filho dela, dessa miséria tropical,
Talhada em carências, parida no sal
Do suor que desidrata e mata, mói
Esqueletos e consciências, músculos,
Reduzindo homens a essa coisa gasta,
Sem pretensões e sem patrimônio.

Não me peçam o silêncio da omissão,
A anuência com a anormalidade,
Que eu diga tudo bem para a morte.
Há em mim a comiseração do bom,
A fragilidade de muitos limites,
Mas também um sentimento bravo,
Uma sede imensa de vingança
(não a gratuita e pessoal, egoísta,
Que se basta em pequenos gestos
E se realiza no primeiro ato).

É muita sede e de muita vingança
Exigindo ordenação no caos imposto
Como determinação irremediável,
Sujeitando homens e coisas a donos.

Já não me bastam os versos
Nem algum dinheiro honesto e justo.
Eu quero mais, eu preciso de mais,
Algo assim como um mundo de paz
Usufruído por homens iguais.

Haverá o dia, tenho certeza,
Em que aposentarei a minha escrita,
Deixando a obra no papel inconclusa,
Para terminá-la em outra situação,
Quando encontrarei, enfim,
A minha própria libertação.

Francisco Costa

Rio, 23/11/2014.
Anormal porque anomalia no que eu supunha comum,
Mostrou logo a diferença, a capacidade de ocupar tudo,
Tomar todo o espaço e se fazer coisa única e precisa,
Toda ela inusitados movimentos, coordenada precisão
Em prodígio de desempenho, muito mais que mulher,
Um lampejo cósmico, primeiro, no instante da criação.

Ora lúdica, ora severa, domesticada ou selvagem, fera,
Em alternância de atitudes e gestos, quereres novos,
Sempre em harmonia com o momento, declinou de tudo
E se reduziu a um sorriso molhado dizendo eu te amo.

Foi aí que me descobri capaz de versos, de poemas
Em adendo a ela, nobreza posta no calor da carne
Reduzida a mundana flor ornamentando os meus dias.

Francisco Costa

Rio, 22/11/2014.
Meu anjinho vagabundo,
Que nunca está quando preciso.

Rebelde e insubmisso, revel,
Flana sempre as asinhas longe,
Justo quando se faz necessário,
Poupando flechas, deixando-me
Assim, a mercê da timidez, tonto,
Um bundão ruborizado maldizendo
Esse anjo inútil, só um passarinho
Pensando que é gente.

Quando ele me pedir chá
De jasmim com mel
Vou dar-lhe um belo chá
De pimenta e fel.

Talvez endiabrado ele funcione e,
Irado, me ajude a sorrir,
A amar e ser amado.

Francisco Costa

Rio, 22/11/2014.
Luz que se renova
Quando despida,
Sem pudor
E sem pétalas,
Iluminando tudo.

Luz precária,
De curta duração,
Mero flash
Espocando rápido
Rápidos prazeres.

Luz entre luzes,
Mas diferente
E fundamental
Porque aqui,
Em mim,

No abajur
Que ilumina
A minha cama,
Carente anteparo
Da luz que me banha

Opaca penumbra,
Escravo dessa luz.

Francisco Costa

Rio, 22/11/2014.

sexta-feira, 21 de novembro de 2014

Jamais pensei, sequer desconfiei,
Que nesta altura da vida,
Contrariando um histórico de exageros
Em corpos do sexo oposto,
Eu iria me apaixonar por um homem.

Surpreendido e gratificado, rendo-me
Ao olhar doce e encantado de Leone,
O que me esperou por meio século,
Certo de que eu guardaria o melhor,
O que retive obstinado, quase em avareza,
Para oferecê-lo, em culto de puro amor,
Sagrada e visceral necessidade para existir.

Súbito, contrariando a ordenação de tudo,
Saído de um sonho inimaginado, surreal,
Desses que nascem em contos de fadas,
Foi-me dado o alimento para a sobrevida,
Leone, combustível para mais versos e risos,
Tardio filho, temporão para mais diferente,
Mais que uma luz no fim do túnel,
O próprio túnel por onde caminho,
Rejuvenescido e orgulhoso ao ouvir “papai”.

Francisco Costa

Rio, 21/11/2014.
Ostra púbica,
Pélvica, inguinal,
Quase umbilical,
Contaminada:

Tens uma pérola
Engastada,
Fiel farol
A orientar.

Abertas
Tuas conchas,
Derramas um mar
No que rodeia,

Invalidando
O que mais não seja
Uma ostra latejando
Inquieta,

No púbis,
Na pélvis
Em mim.

Francisco Costa

Rio, 21/11/2014.
Como uma tigela de açaí,
Carmínea e doce,
Energética,
Teu sexo explode sonhos
Quando liberto
Da roupa que o oprime.

Luzidio silêncio que espera
Em umidade e calor,
Espraia mistérios e segredos
Acorrentados no teu corpo,
Adendo do que ostentas,
Um dissimulado temporal
Disfarçado de brisa,
Em íntimos apelos
De acorde-me.

Francisco Costa

Rio, 21/11/2014.
Quando a noite imprime o seu ritmo
De silêncio e memória atenta,
Sinto angustiadas saudades
De não sei o que nem de onde.

Há um espaço vazio que me oprime
E desgasta, como se me fracionasse
Em cacos separados, que percorro,
Um a um, íntimos e familiares,
Conhecidos, mas com a sensação
De que faltam alguns, perdidos,
Deixando-me incompleto.

É desses que tenho saudades,
Dos que me dão a sensação
De que não sou daqui,
Mas de outro lugar,
Onde estão os cacos que perdi.

Francisco Costa

Rio, 20/11/2014.

OUVINDO JOHNNY MATHIS

Faz tanto tempo
Que já se pode contar
Fração de século.

Não havia rugas no rosto,
Rasgos no peito,
Rancores amealhados,
Rituais de cansaço e sono.

Éramos meninos enamorados,
Uns dos outros, da vida,
Do mundo a nossa disposição,
Escondendo farpas e fisgas,
Os motivos para lágrimas,
Os muitos velórios familiares,
Tudo o que flagela ou mutila.

Havia o Vietnã, a ditadura,
O Muro de Berlin... Mas,
Imunes e confiantes, em risos,
Dançávamos agarradinhos,
Na sonolência da cuba libre
Ou do vinho, com beijinhos
Rápidos, inocentes, só ensaios.

Mas o baile acabou.
Veio a formatura, o diploma,
Depois família, filhos, netos,
E agora, no ocaso de nós,
Nos reencontramos só amigos,
Não mais. O tempo diluiu tudo,
Encarcerando na memória
O melhor de nós, esquecido lá.

Permita-me convidá-la para dançar.
Coloquei Johnny Mathis na vitrola.

Hoje amanheci aquele menino,
Só quero dançar, e dançar, dançar...
Em retardado pilequinho, nascido
Naqueles copos de vinho.

Rodopiemos no salão,
Como outrora,
Ainda que atrasados,
Como na escola,
Fora da hora.

Francisco Costa

Rio, 20/11/2014.

OUVINDO KENNY G (III)

(Going Home)

Como voltar para casa se,
Cidadã do mundo,
Perdi-me em todos os lugares
E agora tateio no escuro,
Sem berço e sem raízes,
Ao menos um porto, um abrigo?

Para onde olhares, lá estou eu;
A voz que ouvires é minha voz,
Nem sempre identificável,
Mas minha, onipresente e real,
Quase concreta.

Estou em cada cama,
Orientando carícias, dizendo coisas,
Velando sonos, criando sonhos;
Em cada casebre ou choupana,
Agasalhando corpos quase nus,
Plantando a esperança de refeições;
Nos conventos, orientando orações,
E nos puteiros, na sagração do prazer.

Acompanho-te, diuturna, insistente,
Sem te dar a menor chance de fuga.

Estou nas festas, sorrindo e dançando,
Nos palanques, discursando,
Nos velórios, chorando.

Não há flor que desabroche em cores
Sem que eu esteja atenta, apontando,
E salto com o tigre, corro com a gazela,
Alo-me nas asas dos pássaros,
Ora solar, ora noturna, de carona na lua,
Norteando namorados.

Se não me vês ou não me ouves,
Desatento e autossuficiente,
A culpa não é minha.

Optaste pelo encolhimento,
Quando poderia ser orgia.
Não tenho culpa se deste as costas
A amiga tão íntima e fiel, a poesia.

Francisco Costa

Rio, 19/11/2014.