sábado, 11 de abril de 2015

ANÚNCIO

Precisa-se de um coração,
não para transplante,
estudos anatômicos,
ilustrações.

Cardistraído e leve,
levemente ciumento,
que traga aconchego,
necessidades eróticas,
curiosidade de tudo.

Cardiminuto, míúdo,
discreto o bastante
para que caiba em mim,
embora cardimenso,
capaz de conter o mundo.

Que pulse em silêncio
e silencioso se anuncie
presença constante,
estrela no horizonte,
fazendo-me, encantado,
ex planeta errante,
rendido, entregue,
orbitando a seu lado.

Precisa-se de um coração,
não para transplante,
estudos anatômicos,
ilustrações.

Um coração com endereço,
digitais, documentos e nome,
para que cardistraído
ao meu se some.

Francisco Costa.
Rio, 11/04/2015.

HOLÍSTICO

Resto do que em mim sobrava,
reduzido a pouco, quase nada,
procuro-me, cacos dispersos,
em tudo o que fez parte de mim.

Eu fui aquela árvore solitária,
vegetal arquitetura de florações
ornamentando as manhãs baldias,
feitas de trinados e ventos, chuvas.

Aquele menino maltrapilho e pobre,
acorrentado ao que lhe falta e dói,
fui também, farejando consumos,
sonhando com sopas e ensopados.

Arrebatado em ódio e fúria, raiva,
guerrilhei seculares moinhos,
quixotescamente edificando sonhos
que amanheceram quase derrotas,
em desafios a novas escaramuças.

Fui minha jaula e minha chave,
prendendo-me em beijos e abraços,
libertando-me em adeuses tristes,
náufragos nas lágrimas, definitivos.

Garimpei sorrisos, amealhei corpos,
submetendo-me, solícito e inteiro,
à magia da posse, intermédio nu
onde se consagra a realização.

Naveguei céus e coletei estrelas,
guardando-as entre conchas e seixos,
alguns velhos poemas e pinturas,
comigo atento à linguagem das cores,
disfarces da luz enamorando-me.

Cultivei hortas e manias, vontades,
algumas abortadas, outras, realizadas,
ordenando-as ao acaso, por acaso,
em versos paridos a minha revelia,
imperiosos, exigindo a decifração
do que em mim sobrava e faz falta.

Agora sou só duas mãos que digitam
e um coração aflito que as orienta,
uma flor solitária que olhos não visitam,
quase nada que para o nada se ostenta.

Francisco Costa
Rio, 11/04/2015.

GEOMETRIA

Empírico e atento
meço polegadas
analiso parábolas
elipses, triângulos
topograficamente
palmilhando relevos,
saliências
reentrâncias
curvilíneas formas
ora côncavas
ora convexas
até não haver dúvida:
é uma mulher.

Em decúbito
imóvel adormecida
é dádiva ao tato
geometricamente
pronta ao encanto
do observador
atento ao espanto
de ver a perfeição
nua.

Francisco Costa
Rio, 11/04/2015.

Te amo de amor infindo,
cravado e fundo,
tipo tatuagem,
aleijão,
cicatriz,
qualquer coisa inalienável,
como asa de pássaro,
sol de verão,
sorriso em festa,
nudez de menino ansioso
diante da primeira fêmea que,
por primeira, será referência
pela vida a fora.

É amor tanto que bastante
para vazar de mim apaixonado
e escorrer nesses versos
que te dou.

Francisco Costa
Rio, 08/04/2015.

CURIOSIDADE

Que trazes
de não efêmero
passageiro
aéreo e fugaz
capaz de se diluir
e fazer-se nada
amanhã?

O que em ti
é duradouro
pertinente
constante
e declarado
em atestado
de permanente?

O que em ti
não é brilho
dependência de luz
ou calor ocasional
dependente de sol?

O que de concreto
em ti habita
incógnita de desejos
debruçados
sobre o meu corpo
devoluto, aguardando
invasão?

O quê, o quê
se em mim
mais não pulsa
que a curiosidade
senhora de tudo
ocupando-me
decifração
de ti?

Francisco Costa
Rio, 08/04/2015.

OUVINDO HAENDEL

Agora caminho pela praia,
senhor de mim,
livres das amarras e peias
que me atribuíram
mas que não são minhas.

Observo as gaivotas,
e uma a uma, partem
levando o que não é meu:
documentos, referências,
o incutido na escola,
na igreja, os conselhos
e exemplos, teoremas,
postulados, leis, normas,
cada imposição imposta.

Por fim nada me habita,
permitindo-me essência,
nudez de atributos inúteis
descartados, reduzindo-me
a esta casca quase oca
com forma humana,
escondendo órgão único,
só um coração.

Francisco Costa
Rio, 08/04/2015.

NEGRA

(Em Moçambique hoje é o dia da mulher.
Então esse poema para todas elas,
e em especial para uma delas)

Negra, toda negra
e constelada,
com miríades de estrelas
refletidas nos olhos,
e planetas de sonhos
orbitando os meus desejos
de peregrino na busca
do porto encantado
onde se atraca o prazer.

Negra, absolutamente negra,
azeviche e jabuticaba, amora
de sumarenta polpa, úmida,
pronta para lábios e línguas,
uma noite tropical e quente
em cujo regaço adormeço.

Pele de pelúcia negra,
delicada camurça onde,
alheio ao que mais existe,
abandono-me negritude
integral, encontrando-me
no que em mim perdura
porque em mim ancestral.

Negro charco de melanina
onde me banho e me basto,
sorvendo a inspiração
que me alimenta e anima.

Negra, maravilhosamente negra,
como as negras pupilas negras
dos meus olhos enamorados,
negros por ela, em reflexo
do que me atordoa e completa,
faz sentir-me poeta,
só um escrevinhador do verso
que me inunda e completa.

Negra.

Francisco Costa
Rio, 07/04/2015.

ENLUARADA

A lua que te contempla
contempla humilhada
diante do teu brilho,
tardio reflexo,
cintilação,
pálida fugacidade
escondida em mim.

Luminosa e ligeira,
de noturna trajetória,
escapas de braços
e abraços, beijos,
para ser só oferenda,
dádiva, ostentação
posta na noite.

Idealizada e ausente
porejas saudades
de antigas madrugadas
onde, nauta de lençóis,
eu viajava teu corpo,
enluarada carne
só de chegada
porque nunca parti.

Francisco Costa
Rio, 10/04/2015.

AS VOVOZINHAS

Agora elas passam avós,
compenetradas e apressadas,
entre netos e rituais religiosos,
com as  cabeças nevadas
e os corações cansados.

Algumas me cumprimentam,
ornamentadas em sorrisos,
istmos entre o ontem e o agora,
meninas ainda, embora antigas,
passeando nas próprias memórias.

Outras há que disfarçam os olhares,
sempre rápidos e aflitivos,
em vã tentativa de amnésias,
alzáimeres, borrachas na lembrança
ativa, e que ainda as anuncia mulheres,
esses esquivos seres fugindo de tudo,
até de si mesmos corados, intimidados
pelo que incomoda porque ardendo.

Vovozinho ousando mais um olhar
entendo quando me dizem
que velhinhos são crianças
esquecidas dos compromissos,
arrastando corpinhos gastos
porque já muito usados.

Francisco Costa
Rio, 08/04/2015.

ANÚNCIO

Precisa-se de um coração,
não para transplante,
estudos anatômicos,
ilustrações.

Cardistraído e leve,
levemente ciumento,
que traga aconchego,
necessidades eróticas,
curiosidade de tudo.

Cardiminuto, míúdo,
discreto o bastante
para que caiba em mim,
embora cardimenso,
capaz de conter o mundo.

Que pulse em silêncio
e silencioso se anuncie
presença constante,
estrela no horizonte,
fazendo-me, encantado,
ex planeta errante,
rendido, entregue,
orbitando a seu lado.

Precisa-se de um coração,
não para transplante,
estudos anatômicos,
ilustrações.

Um coração com endereço,
digitais, documentos e nome,
para que cardistraído
ao meu se some.

Francisco Costa.
Rio, 11/04/2015.


domingo, 5 de abril de 2015

SOLILÓQUIO

Taquicárdica presa das emoções,
ouço-me inquietude na madrugada,
remoeres de indagações,
secretas respostas que não me dou.

Passiva ferramenta de ímpetos,
vontades exageradas, quereres,
reduzo-me, antagônico de mim,
ao que queria ser e não sou.

Eu não sou esse que vocifera
urgentes exigências,
provimentos imediatos,
mudanças radicais.

Sou aquele que colore estrelas
e se encanta com insetos,
guardando a carícia exata
para o corpo que virá à noite,
solícito à linguagem da carne.

Eu não sou esse que mal sorri,
entretido com combates,
fazendo escaramuças,
em ataques permanentes.

Sou o que coleciona borboletas
e se enternece com sorrisos,
o que apascenta nuvens e ventos,
ovelhas imaginárias por aí,
contabilizando amanheceres.

E assim, evolo-me contradições,
ambições abortadas, desejos
que desfio em versos, em poemas,
anunciando esse que não me queria,
em vã tentativa de ser o outro,
para, sendo o outro,
lastimar-se por não ser este que sou.

Francisco Costa
Rio, 04/04/2015.

TALVEZ APAIXONADO

Com a malemolência do mar,
alheio a ventos, interiorano,
lambendo as pedras, a areia
morna, branquinha e doce,
sigo apartado do que abate
e concentra, exige-me outro,
o ocupado com o mundo.

Agora navego fora de mim,
adejando sonhos surreais
onde, anjo abatido, no solo
tateio carnes expostas, nuas,
protuberâncias e reentrâncias,
vales e montanhas, o relevo
que me domina e concentra
só parte do que me habita.

Logo mais, quando a lua vier,
montarei um cavalo branco
com pelos de algodão
e irei buscá-la distraída,
perdida entre a esperança
e a utopia, excitada e pronta
para ser seduzida inteira
onde tudo conta, na poesia.

Francisco Costa
Rio, 26/01/2015.

Utópico, delicio-me às escâncaras
com o que em mim falta
porque procura constante,
busca que me faz relativo,
outro, antes, sem o que agora sei;
outro, daqui a pouco, com o que saberei.

Este o segredo de estar aqui: perquirir,
perguntar, farejar todo o não interdito,
e incorporar cada resposta a si,
fiel depositário de saberes.

Entre o modus vivendi das formigas
e a explosão de uma nova galáxia
pastam as teorias literárias e sociológicas,
o rock que escorre da casa do vizinho,
o trânsito nos corredores dos shoppings,
o sorriso da viúva sonhando o passado.

Somos o que sabemos, e de inalienável
só o que não se pode apartado,
presa de acidentes, perdas e boticões,
impróprio às compras e vendas,
às trocas, empréstimos e aluguéis
porque parte de nós caminhando.

Para onde?

Há os que vivem acrescentando dias,
sendo um em cada dia, em escalada,
e os que se repetem, repetindo o dia,
sempre o mesmo, vendo tudo parado,
como uma planta presa ao solo,
esperando a morte chegar.

Entre o remoto e o agora
uns se trouxeram,
outros se deixaram,
repetindo monótonos a dança de ontem,
certos de estarem certos
porque no ritmo da música que já silenciou.

Em tempo de semeaduras se recusam
porque ainda nômades coletores,
entre a providência divina e o acaso,
reduzidos a membros e fome,
esperando a verdade se inaugurar.

Francisco Costa
Rio, 23/03/2015.

SÓ CHORAR

Que fazer, senão só chorar,
atender às lágrimas escondidas
desde que pensei tudo solucionado?

Como não verter o pranto,
arregimentar a dor mais funda
e expô-la na vitrine da face?

Como digerir o golpe baixo
e esconder a faca, se sangra,
em atestado de ferimento aberto?

Choro a minha pátria chorosa,
em véspera de retalhe e venda,
nas mãos dos mesmos
que pensei extintos, dormindo
no leito do anonimato.

Mas eis que ressurgem incólumes,
prontos para dolo maior,
vender o motor do nosso veículo,
o coração do nosso organismo,
o petróleo sangue que nos anima
povo em franco progresso.

Eu te choro, Petrobras, musa
que se estampa em tudo,
nos postos de combustíveis
e nas revistas, na publicidade
e nos 85 mil empregos diretos,
nos mais de 350 mil indiretos,
quase que bandeira nacional
hasteada em nossas consciências,
tremulando no vento do orgulho.

Eu te choro porque em pedaços,
com o esqueleto esquartejado,
as vértebras dispersas:
plataformas e balsas, refinarias,
navios petroleiros, portos,
toda a tecnologia de ponta,
amealhada em décadas, a mercê
dos vermes da putrefação
refestelando-se no teu cadáver.

Eu te choro, parte de mim
prestes à amputação,
mutilando-me, irreversível.

Eu me choro, Petrobras,
pela minha impotência,
por, sozinho,
não poder fazer nada,
senão só chorar.

Francisco Costa
Rio, 06/01/2015.

Separa-nos um oceano
E o que seria ponte aparta,
Faz-se abissal abismo
Afogando sonhos.

Sereia distante,
De tritão ausente,
Comungamos lágrimas,
Para que mais se salgue
O oceano, mortalha
Do que seria e não foi.

Francisco Costa
Rio, 30/05/2014.
Sentadas nas calçadas do mundo
As crianças assistem
As partilhas dos orçamentos,
As destinações das verbas,
As alocações e empenhos,
As bocas que devorarão o dinheiro.

Muitos por cento para os tanques,
Os caças, os rifles, as metralhadoras.
Alguns por cento para lâmpadas,
Tubulações, reservatórios, silos...
Zero vírgula alguma coisa por cento
Para hospitais, clínicas, ambulatórios;
Vestígios por cento para escolas,
Creches, orfanatos, universidades.

Réplicas do sistema, meras cópias,
Os meninos se levantam das calçadas,
Municiam-se com rifles e metralhadoras
E priorizam as prioridades do sistema.

Francisco Costa
Rio, 29/04/2014.

PROPOSTA

Senhora, sei que já não és menina,
acumulas meio século de esperas,
esperando que se repitam paixões
ou que cheguem diferentes, novas.

Olhe-me. O menino que fui um dia
eu o perdi a bem meio século atrás,
passando a acumular incômodos:
responsabilidades, compromissos,
tudo o que exaspera porque inútil.

Já não nos caem bem as brincadeiras,
o correr por aí e amar na relva,
cometer amassos no portão,
fazer sexo em pé, na amurada do cais,
beijarmo-nos, em público, imorais,
língua e saliva, mãos loucas e bolinos
ruborizando os circundantes corados,
entre a vergonha e a inveja.

E nada de correspondência apimentada,
carregada de insinuações anunciadas
e eróticas promessas estampadas.
Agora só saberíamos escrever o doce,
coisa de baunilha e mel, açucarada.

Por isso não prometo loucuras na cama
nem espero desempenho que inflama,
mas apenas que me dês a mão enrugada,
para que somemos mais de um século
de amor guardado como um tormento,
pronto para explodir nesse momento.
.
Venha, vamos nos despir por completo,
mais do que seria capaz um nosso neto:
do pudor, do tempo, dos nossos corpos.

Venha, menina, não estamos mortos.
Se impossibilitados de noite inteira
que a façamos caber em hora inteira,
minuto a minuto, cada um mais fecundo,
até o último e precioso segundo.

Francisco Costa
Rio, 10/01/2015.

OS POEMAS

Sempre que me chega um poema triste
Choramos juntos.
Poemas são como as pessoas,
Capazes de acionar sentimentos
E determinar comportamentos.

Como não chorar diante de um réquiem,
Palavras sussurradas para esquifes,
Na esperança de que naveguem no infinito
E cheguem a ouvidos que não existem mais,
Ou se excitar com descrições eróticas
Embutidas em desempenhos só insinuados,
Arregimentando hormônios e lembranças?

Que dizer dos versos irônicos, debochados,
Capazes de desmoralizar, por a nu o caráter
Do político corrupto, da autoridade ridícula,
Do dirigente recheado de incompetência,
Ou do argumento brega, à moda antiga,
Carregado de bombons, ramalhetes,
Coraçõezinhos com setas espetadas
E cupidos travestidos de anjinhos,
Invocando adolescência e dependência?

E dos poemas épicos, municiados com o ardor
Do combatente de caneta em riste, pronto
Para os duelos de palavras, frases, sentenças
Que se redigem condenatórias, em cobrança
De avante, para a frente, continuemos?

Poemas são documentos, atestados de época,
Inventários de atos e fatos, testamentos,
Arrestos de perdas e danos, monumentos
Nascidos para atravessar o tempo
E testemunhar pensares e sentimentos.

Cada livro de poemas é um museu
Onde se exibe o que não morreu,
Pulsa em versos, eternizando momentos.

Francisco Costa
Rio, 09/06/2014.

PERGUNTAS...

De onde me vêm os versos,
quase constantes, à revelia,
sem que eu os peça ou espere?

Como atribuir-lhes minha autoria
se quase nunca concordamos,
em rebeldia explícita e constante?

Necessidade de catarse pelo que incomoda?
Como então justificá-los acordando-me,
em plena inconsciência,
quando nada incomoda?

Aprendizado indesejado, fluindo constante?
Então engenheiros desenham por impulso,
médicos receitam por instinto, motoristas
dirigem veículos involuntariamente,
por incontroláveis impulsos naturais?

Não, nada flui sem a intermediação da vontade,
sem a determinação do fazer
promovendo a intenção ao ato.

Onde reside então esta fome de fazer arte,
reduzindo pintores a apêndices de pincéis,
músicos a peças de instrumentos, atores
a ladrões de almas, as que eles expõem por aí?

Como explicar que homens se abstenham
do que a vida oferece e se debrucem em palavras,
ordenando-as, concatenando-as, seduzindo-as
em textos que os escravizam e submetem
porque, nascidos ultrapassados, exigem outros,
já prontos, na fila, esperando a redação?

Que maldição é essa que nos assola vítimas
do inexplicável exigindo explicação?
Que estranho vegetal é esse, florescendo veneno
e que envenenando perfuma e enfeita, à revelia
de quem o plantou, em colheita obrigatória?

Como livrar-se desse câncer se parte do corpo,
desde o nascimento, tão íntimo e natural
que extirpá-lo seria abrir mão de si escrevendo,
para ser só um inútil e esclerosado câncer,
uma ferida que em si não se justificaria
porque avaria em nenhum corpo?

Como recusar-se ao fazer poético
se anexo do coração, um órgão a mais,
invisível e fundamental, impulsionando-o?

Como fechar a mão e dizer não
se o peito continuará aberto, dizendo sim?

Como se livrar da maldição
se o que maldiz tem tradução,
explicita-se em forma de amor?

Como não emitir palavras carícias,
fonemas beijos, signos orgasmos,
se nos poetas assim se manifesta o amor?

Quando pensamos que estão escrevendo,
estão nos iludindo, estão namorando.

Francisco Costa
Rio, 05/01/2015.

HARÉM

Se há luta inglória
Foi a que empreendi
Com as palavras.

Cada palavra é única
Porque fêmea,
Com a especificidade
Da individualidade
Que não se repete,
Exigindo exatidão
Na abordagem.

Esta pudica e casta,
Aquela desavergonhada,
A outra, trivial e comum,
Cada qual única,
De individualidade
Mantida incólume,
Indiferente ao uso
Que lhe faça o digitador.

Colecionar palavras
É manter um harém
Onde acabamos
Nos tornando
Uma palavra  também.

Francisco Costa
Rio, 19/06/2014.

DIFÍCIL POR TÍTULO

(Ouvindo Mozart)

Quer-se poema o que não cabe na foto
e pouco se basta na realidade dos dias,
sucessão de aleatórias possibilidades.

Não se pode sustentabilidade de fatos
os cordões gastos que nos atrelam
e impedem passos, reduzem a estático.

Há, entre as primaveras e os temporais,
o que não se define porque impróprio,
só rabiscos que se pretendem palavras.

Há sinfonias inaudíveis, mortos vivos,
cores imperceptíveis, vontades vadias,
suposições reduzidas a mistérios.

Há a necessidade de prover a vida,
permitir os trâmites do que desgasta
e envelhece, seca sorrisos e hormônios.

Há os outros, parcimônia e carência aqui,
fartura e ausência de comedimento lá,
alheamento e indiferença acolá.

Há corpos opostos, complementos
porque encaixes perfeitos, exatos,
em obrigatoriedade de busca e encontros.

Há torrenciais desejos nascidos em vão,
ambições malogradas, estenderes de mãos
para pegar o nada, tesões insatisfeitos.

Há o desconhecido, imune às equações,
às leis e postulados, intangível e longe,
pústulas na curiosidade que nos desafia.

E é justo nesses hás que mora a poesia,
esse dar-se de não se sabe o que,
proporcionando realizações e sofrimentos,
ornamentando poemas e momentos.

Francisco Costa
Rio, 21/01/2015.

QUERERES

Quero tudo o que a mim cabia e a vida não deu,
em negativas constantes, permanentes, más.

Quero conhecer Pequim e Constantinopla,
namorar no Prado, trocar beijos no Louvre,
tomar uísque com Vinícius, cantar boleros
com a voz de Gatica, sambar com Cartola.

Quero aprender a surfar, saltar de paraquedas,
fazer mergulho autônomo, pilotar Phantons,
apascentar rebanhos de ovelhas nos Pampas.

Quero trocar tiros em Damasco, ir à Havana,
pedir autógrafo a Fidel, amanhecer africano.

E se a mais quereres tiver direito, quero
colecionar conchas e guardar borboletas,
ter enorme estufa com todas as bromélias
que eu coletaria em todos os continentes.

Quero antepassados reencarnados e rindo,
todas as ausências desfeitas, primos e primas
meninos outra vez, peixinhos nos córregos
que os esgotos e dejetos industriais migraram
para o nunca mais, distante, longe, no nunca.

Quero louras de lingerie preto, morenas
de cabelos negros e calcinhas vermelhas
dançando tangos imaginários no meu quarto,
negras de azeviche e olhos de jabuticabas
nuas, fazendo-me lua na noite inaugurada.

Quero cada uma que registrei nos versos,
todas as declaradas e as que mantive secretas,
uma boa pescaria com papai e tio Zé, tio Zeca,
antigos natais, velhas quermesses, fogueiras,
tocando tuba na procissão de São Jerônimo,
certo do céu que perdi junto com a inocência.

Mais quereres ou acabou o estoque? Mais?
Eu quero tocar nas nuvens, conhecer Marte,
jogar bolas de gude com Mandela, rodar pião
na Palestina florida, sem cadáveres e dores,
sepultar a tristeza de todos os humanos,
esses bichos estranhos e equivocados
que trocam a cópula pela cúpula,
o coito pela luta, mais inocentes que crianças,
acreditando que acionando gatilhos
dos canos jorrarão esperanças.

Só resta mais um querer, só mais um?
Eu queria não querer, isso dói.

Francisco Costa
Rio, 23/01/2015.

CALEIDOSCÓPIO

Quando me ponho ridículo,
presa fácil do risível,
malversado em meus atos,
observo formigas e flores,
encanto-me com crianças
correndo nas calçadas,
namoro secretamente
moças que jamais saberão
que um dia as namorei.

Este o meu vácuo mental,
a parte não racional,
ininteligível como formigas
no afã de ir e vir, aleatórias;
das flores, linguagem muda
porque de formas e cores,
perfume debruçado do galho,
só uma impertinência na tarde
onde, conflito de referências,
me resolvo em versos.

Esta a desgraça dos poetas,
serem dois, ou mais que dois,
o que dá provimento à vida,
realiza compras, faz filhos,
reconstrói o quebrado,
edifica o por fazer, discursa,
nutre-se, trabalha e dorme.

Já o outro, estranho e só,
gêmeo em corpo único,
é só o mesmo homem na infância,
preocupado com formigas e flores,
com outras crianças nas calçadas,
em recusa de se tornar sério
e respeitável, escondendo-se
em ocasionais versos que o revelam.

Francisco Costa
Rio, 09/01/2015.

DESCOBERTAS

Quando me descobri poeta?
Pelas mãos de meu avô,
Diante do chafariz público.

Naquela época eu ignorava
A natureza da luz, dos fótons
Bombardeando minhas retinas,
Coisa de comprimentos de ondas,
De amplitudes e refrações,
Dispersões e reflexões
Saídas do dicionário de Deus.

Sob a água havia faróis, lâmpadas
De muitas e variadas cores,
Apontados para os esguichos ,
Fazendo-me crer a luz
Coisa concreta, material,
Encarnada na água.

Mais tarde aprendi a escrever,
E que a escrita é limitação.
Só escrevemos a aparência,
A essência está no coração.

Hoje a luz não me é segredo,
Mas o meu coração...
Esse aprendeu ainda menino
Que não se bastaria nos olhos,
Que viveria em degredo,
Farejando todas as razões
Das emoções,dos sorrisos,
Das lágrimas, do medo.

Francisco Costa
Rio, 03/06/2014.

PÚRPURA

(Para Fidel Castro, um menino de corpo cansado)

Chove púrpura, vermelho, encarnado.

Encharcado o povo dança na chuva,
em frenesi de gado fora da porteira,
inundando o mundo e os dias mornos,
em cânticos jamais ouvidos, feitos
de fé no futuro, certeza de avanços.

O menino que mitigava pão sorri,
o velho de bengala na mão acena,
a moça na janela desfralda o lenço,
mesmo os pássaros parecem entender
que mais solares e iluminados os dias,
tecendo-se no trabalho coletivo
produzindo frutos compartilhados.

Mesmo o bom burguês, de gravata
óculos importado e relógio de ouro,
confraterniza o livrar-se do fardo
que o amesquinhava e fazia menor,
o burguês empedernido, juramentado,
afogando-se com o seu iate, a mansão,
o efêmero poder que comprou
com moedas que mais nada valem,
porque cunhadas no trabalho alheio.

O que era liturgia é agora ordem do dia,
com os anseios transplantados da utopia
para os calendários, os dicionários,
onde possa se ostentar a palavra liberdade,
deusa proibida, travestida de impossível.

Ceifam o joio e as ervas daninhas
as foices manuseadas pelos lúcidos.
Forjam dias novos os martelos,
submetendo o mais duro metal,
o egoísmo, a bela forma, nova e final.

Sorridente, absolutamente compenetrado,
Deus comenta com um anjo distraído:
meus meninos, finalmente, criaram juízo.

Francisco Costa
Rio, 29/01/2015.

DELÍRIO

Pronto ao precipício,
ao espaço
que engolfa e redime,
aparta
lucidez e inconsciência,
em mergulho
inexorável e definitivo,
assisto-me,
vulto em desalinho
nas escarpas
que não me conterão
suicida
prestes ao teu corpo.

Múltiplo em um,
agora
vago em vácuo,
redemoinhos,
em queda livre,
quase asfixiado
na luxúria da chegada,
fim último do que cai
e se faz espasmo,
no delírio posto
num orgasmo.

Francisco Costa
Rio, 27/01/2015.

EM AUTO FLAGELO

Quando eu já não estiver aqui,
privando da convivência e dos dias,
as manhãs continuarão ensolaradas
e os banhistas irão às praias, mas eu,
ausência compulsória e definitiva,
permanecerei alheio ao trânsito,
distante das cortes de Espanha
e Lisboa, do Império Britânico
em guerra nos livros de história.

A moça que me experimentou gemidos
estará propensa a novas cortes,
em trânsito entre o remoto distante
e as próximas primaveras e verões,
acessível a novos varões e mais gemidos.

Meus pertences serão distribuídos:
essa coleção de autores marxistas
para o rapaz taciturno e apreensivo,
semeando revoltas e revoluções;
esses tratados de Astronomia e Física
para algum colecionador de estrelas que,
impossibilitado de caçá-las e tê-las,
as corteja pelos poéticos nomes:
Sírius, Cassiopeia, Aldebarã... Viúvas
de noivo que as namorava nas noites;
os tratados de Ufologia e Esoterismo
habitarão as prateleiras e estantes
de algum ente estranho e engraçado,
capaz de conversar com insetos
e pastorear rebanhos de nuvens;
os compêndios de Botânica e Zoologia
desafiarão a dicção do dedicado aficcionado
soletrando Pastrongilus megistrus,
Carassius auratus e Mello pasitacus
ornamentando as páginas com cores e formas;
os dicionários... Distribuam a lanço,
o de rimas e o de tupi-guarani, o de francês,
inglês, espanhol... Os vários de português...
Porque casa sem um bom dicionário
é granito com pretensão de diamante.

Distribuídos os livros, é a vez dos discos,
de retalharem a trilha sonora da minha existência,
sem critérios e complacência, em holocausto
do que em mim foi anexo, embora comigo,
como um farol sonoro clareando o caminho.

Depois as minhas roupas e os meus  odores,
os poucos móveis e os utensílios do atelier.

Saquearão o meu jardim, é certo, à cata
dos enxertos e hibridações que segredei como fiz,
em paciência e dedicação de monge ocupado.

Meus quadros e esculturas irão a leilão diferente,
sem lances pecuniários, mas de exigências e gritos,
para ornamentar paredes de parentes e amigos.

Assim, desfeito o palco da minha performance,
o picadeiro onde me ensaiei no que gostava,
estarei finalmente apagado aqui, disperso,
mas com o mesmo coração em repetição,
palpitando ainda em algum canto do universo.

Francisco Costa
Rio, 29/08/2014.
Que novidade haveria em novo amor
senão a antecipação do desconhecido,
o navegar em litorais de novas curvas
e rochedos inesperados, praias mansas,
para enlevo dos olhos e curiosidade
do tato em apelo de urgente excursão?

Como, depois de tantas viagens a corpos,
ciceronado ou desbravando à revelia,
recuar, alheio e distante, comedido,
em antecipação de arrependimento
do que poderia ter sido e se contraiu,
sacrificado ao que se queria e não teve?

Entre a intenção e o ato navegam sonhos,
antecipações que se realizam ou  morrem,
murcham, como uma flor prematura e só,
imprópria ao sol e aos insetos, sem odor,
sem forma, sem cor... Indiferenciada,
sem se saber se pedra ou folha, pura dor,
nada.

Francisco Costa
Rio, 29/08/2014.

POEMA SÚBITO

Trôpega, cambaleante e triste,
segue a humanidade a sua sina,
lavrar sangue posto na fortuna
que mal edifica e nada constrói
porque frutificando bem longe,
em mesas distantes, n'além mar.

Desfraldados farrapos ao vento,
cariados sorrisos, lutos adiante,
dores, orgasmos interrompidos
redigem-se no cardápio dos ricos
em refeição permanente e diária.

Chora, África. Chora, América.
Chora Oriente Médio, o mundo.

De um lado os braços e a força,
do outro, os bolsos e as contas.
Aqui se lavra, lá se contabiliza;
aqui se planta, lá se refestelam
em barrigas cheias e sorrisos.

E se surpreendem, perdidos
em ocasionais atos terroristas,
sem a percepção da realidade:
lá é ocasional, de vez em quando,
aqui é o pão nosso de cada dia,
de cada noite, de cada refeição
que migra da nossa mesa vazia.

Se ainda se mantêm sorridentes
é porque armados até os dentes,
sabedores de que suas despensas
e geladeiras, paióis e silos, tudo,
um dia será comunhão ecumênica,
prato único e gigante, enorme,
alimentando a saciedade do pobre.

Francisco Costa
Rio, 20/01/2015.

VIVER ENCANTADO

Persuadiram-me a me encantar fácil
E fiz disso o meu ofício.

Encantam-me as moças baldias
Passarelando nas calçadas e ruas,
Os meninos de peitos nus,
Indecisos entre o passe e o gol,
Os ambulantes apregoando vendas,
Os lírios nas floreiras e janelas.

Encantam-me as fisgas de peixes,
Lucilações de prata em contorções,
As aves migratórias em delírio
De nunca chegar, persistindo,
Divididas entre o sol e o temporal,
Os ícones, as imagens, as fotos
Dos antepassados ausentes.

Encantam-me a alegria adolescente,
As flores sem pudor, permitindo-se
A cópulas com abelhas e borboletas,
A fragilidade da criança risonha,
Sem saber dos percalços e tragédias
Escondidas no futuro, só esperando.

Encantam-me a sonoridade súbita
Das palavras prontas aos versos,
Os acordes dos violinos, o planger
Dos violões e sinos nas catedrais,
O vento morno da madrugada,
A espera ansiosa do enamorado.

Encanta-me viver encantado.

Francisco Costa
Rio, 05/06/2014.

LAVRADORA DE VERSOS

Perspicaz e dissimulada,
Ela guarda prazeres inauditos,
Propósitos inconfessáveis,
Vontades de pura loucura.

Há nela qualquer coisa mórbida,
Viciada, diferente e que seduz,
Põe no claustro da curiosidade,
Exigindo posse total e imediata.

Não anda, desliza, compenetrada
Em seu mundo de disfarces,
Escondendo gemidos e esgares,
Suor e sorrisos, toda língua
Em avidez de último gesto.

Chega séria, falando o trivial,
Mostrando-se mansa, distraída
Em meu atelier, perguntando,
Prólogo do que se seguirá, depois.

Logo desfaz-se das roupas, e nua
Caminha na sala, natural e doce,
Para semear poemas no quarto.

Pela manhã faz café e vai embora,
Deixando-me em trabalho de parto,
Pronto para parir os versos eróticos
Que ela, entre mordidas e sorrisos,
Docemente plantou.

Francisco Costa
Rio, 29/05/2014.

CARTINHA DE AMANTE

Perdão, poesia,
não tenho como atender aos teus reclamos
e me deixar seduzir por tua voz.

Não te sintas preterida ou abandonada,
pense-me como um marido atarefado
que saiu para trabalhar e voltará logo.

Urgências outras me reclamam,
tão urgentes que longe dos versos,
dos voos poéticos, alucinatórios.

Claro que permaneço afeito a beijos,
pulsando sexo e ânsia de encontros,
namoricos insinuados no papel
e mensagens subliminares de vou,
mas o tema que se impõe é outro,
transcende as minhas necessidades
e afoga em uivos e medos, indignação,
o meu coração desanimado, anestesiado
em dor e solidariedade, luta constante
por mudanças maiores que meus versos.

Logo mais volto e prometo recomeçar.
Por enquanto descanse na inspiração,
durma e sonhe que voltarei vitorioso.

Beijão desse sempre dedicado amante.

Francisco Costa
Rio, 01/08/2014.

PERDÃO, NASSIF

Perdoe-nos, Nassif,
por termos lhe roubado a infância,
obrigando-o a trocas despropositadas,
como a dos jipes e tanques no tapete da sala,
de plástico e sonhos manipulados por você,
por blindados de verdade no seu jardim,
atropelando as flores e o seu sorriso,
atirando no seu pai ensanguentado,
em irreversível despedida.

Perdoe-nos pela sua escola escombros,
pela sua namorada de útero inválido,
ressecado na miséria, extirpado no medo.

Perdoe-nos pela adolescência obsoleta
porque sem bailes e sem namoros,
bélica, em prontidão de não morrer,
reduzida a evitar tocaias e fugir de tiros.

Perdoe-nos pelas lágrimas impostas
e os gritos incontidos,
por lhe ensinarmos o ódio
e cultuarmos a discriminação.

Perdoe-nos por termos Deuses diferentes,
embora de mesmos atributos
e mesmos propósitos,
criadores da mesmas coisas,
sem que nós ou você Os conheçamos,
como crianças com a infantil pretensão
de saber o que pensa e o que faz o pai.

Perdoe-nos pelos seus amigos amputados,
pelas mutilações semeadas, pelas mortes
diuturnas e cotidianas que o assolam,
transformando o seu país em cemitério,
onde, entre catacumbas você caminha,
esperando a esperança, olhando o vazio.

E não pense em fugir de onde você está
porque os nossos punhais afiados
o estarão esperando em qualquer lugar.

Perdão, Nassif, perdão.

Francisco Costa
Rio, 09/01/2015

PÁTRIA ESCRACHADA

(Aos companheiros que acreditam, e resistem)

Eita, Brasilzão,
Que vai do litoral ao sertão,
Que não é mais burguês nem português,
Menos inglês ou ianque porque belo,
Verdamarelo, cor de folha e flor.

Terra de proletários, operários,
Lavradores lavrados em dores,
Da mulata de bunda arrebitada
E dos sons da bicharada na mata,
Ora árida, tostada em pré queimada,
Ora tropical, majestosa e imperial,
Fazendo a  hematose do mundo.

Terra sofrida, cicatriz e ferida
De hemoptíases e ascaridíases,
Da brucelose e da tuberculose
Organizando filas em hospitais,
Sinfonias de gemidos, de uis e ais.

Brasil corrupto, do escorbuto,
Da puta e do puto, da prostituta,
De um povo que labuta, se dá na luta,
Armado de marmita e disposição,
Com alma de poeta, olhar de esteta
E ferramentas na mão.

Terra do acarajé e do churrasco,
Onde me arrebento e me lasco
Sem damasco, mas com coco e manga,
Jabuticaba e mangaba, caqui e abacaxi.
Rincão do tucupi e do tacacá, do abaeté,
Da tracajá, da anta e do jacaré.

Musical solfejo de sanfonas e zabumbas,
De surdos e tamborins, dos jasmins,
Dos ipês, embaúbas e carnaúbas.

País dos pinheirais e dos generais,
Do seringais e marginais,
Tudo junto e misturado,
A puritana e o tarado,
O pai de santo e o cristão desarvorado,
Do amém, do saravá e do evoé, baco.
Da maconha, do álcool e do tabaco.

Brasil debochado, escrachado,
Do foda-se e da puta que pariu,
Da pegadinha e do primeiro de abril,
Do drible mágico de Garrincha
Dos gols de Pelé, Zico e Neymar,
Do pincel, da brocha e da trincha
Espalhando cores a nunca acabar.

Brasil do repente e do cordel,
Do tenente e do coronel,
Do vaqueiro e do guerrilheiro,
Da cigana e do sacana, da cana
E da gasolina, do Apesar de Você
E da Carolina, da soja e do dendê.

Da suruba e da maçaranduba,
Da passeata e da procissão,
Da escola de samba, do bloco,
Do frevo, maracatu e do cordão,
Da congada, marcha e baião.

Brasil com rima ou sem rima,
O de baixo e o de cima,
Politizado ou alienado,
Rindo da própria desgraça,
Com torresmo e cachaça.

Brasil que se recusa a ser rês
Para ser a potência da vez,
Ex vítima de judas e gigolôs
Desde o tempo de avôs,
E que agora se vê no futuro,
Ultrapassando cerca e muro,
Querendo-se pra sempre,
Rompendo com o eternamente,
Como crisálida do casulo rompida,
Dando adeus aos tempos da morte
Porque encontrou o caminho da vida.

Brasil da putaria e da procissão,
Do ônibus escolar e do camburão,
Das loterias, da poesia, de azar e sorte.

De Padim Ciço Romão Batista
E de todo artista, de Caetano e Gil,
Gonzaga e Gonzaguinha, Edu e Tom,
Dos pampas e da caatinga, do cariri,
Do pantanal e das litorâneas praias
Com as moças de biquínis e minissaias,
Mais mostrando que escondendo,
Semeando o que por dentro vai ardendo.

Pais da organizada desorganização,
Da pirataria na banca do camelô
Ao discurso do político na eleição,
Da fraude, do roubo, da espoliação;
Da novela e da corruptela, da tigela
Da enjeitada na janela, da garotada
Empinando pipas, pandorgas e papagaios,
Da gude e do pião, da meinha no chão.

Brasil das festas e dos velórios,
Dos estádios e cemitérios,
Com esse jeito elegante de não ser sério,
De comemorar  tudo com foguetórios,
Mostrando ao mundo triste e moribundo,
Que aqui neste recanto do mundo,
Ainda que uns contra, furibundos,
Só se nasce nesse  louco país
Para cumprir o destino de ser feliz.

Francisco Costa
Rio, 28/03/2015.

REFLEXÃO NO ÂNGELUS

Ouço a Ave Maria.

Em litígio comigo,
abarco-me inteiro,
limites que choram,
em prostração miúda
da falibilidade posta.

É certo que amei o sol,
me apaixonei por estrelas,
deliciei-me com as manhãs
e entardeceres, temporais,
em louvor ao temporário
que se mostrou nas cortinas.

Tudo muito belo e presente,
mas só faces do ausente,
do que se escondeu premente,
simples insinuações do que não vi.

Nascido peixe,
com um mar inteiro a disposição,
e com tudo o que nele existe,
contentei-me passiva alga
à deriva, na superfície.

Francisco Costa
Rio, 13/01/2015.

OS ILUSIONISTAS

Entre dentes comentam o fracasso.
São os falidos da esperança,
Os oportunistas nas dobras dos feitos,
As hienas que se riem felinamente
Na espera de sangue, os urubus
Em pré repasto do que querem morto.

Maquiam-se coisa bela e boa,
Mas no íntimo a conspiração e o bote,
Mil artimanhas de parasitas, vermes
Adaptados à predação  e ao saque,
Com tentáculos ávidos e vozes macias.

São os que discursam luto nas festas
E ostentam sorrisos em velórios,
Sempre na contramão das vitórias,
Em mão inversa dos infortúnios,
Cultivando a derrota, o querer, o caos.

Miúdos travestidos maiores e fortes,
Valem-se do que negam, e iludem,
Conduzindo o rebanho da inocência
Para a escuridão de repeti-los em vão,
Caminhando para o matadouro,
Mas certos de que encontrarão o sol.

Malditos sejam todos os que conspiram,
Que fazem da inocência e da incultura,
Os pães seus de cada dia, engordando-se
Com os que se supõem gordos e felizes.

Francisco Costa
É deste amor infindo que te amo,
não do amor vulgar e comum,
que se basta em palavras e gestos
e se anuncia em cios e desejos.

Amo-te desmedido, sem limites, total,
constelado nas intenções mais puras,
em doação de mártir em holocausto,
de herói pronto ao sacrifício, à morte
que se se manifesta na tua ausência,
escuridão de silêncios e desesperos.

És dádiva, dívida sem vencimento
porque não afeita a pagamento,
como os entardeceres de sombras,
os pombos mariscando no quintal,
um sorriso de criança desconhecida,
ponte entre a pureza e o instante.

É desse amor que te amo, indefinido
porque diferente, único, só meu,
como o corpo em que me faço teu,
cálice que me contém apaixonado.

Venero-te tão intenso e completamente
que isto já não é paixão, mas religião,
credo em que me encontro submisso
e me realizo maior, integralmente,
como os lírios que florescem anônimos,
desimportados, sem saberem disso.

Não és princípio, meio ou fim
porque o tudo presente
marcando, latejando em mim.

Francisco Costa
Rio, 02/03/2015.

DAS APARÊNCIAS

(Pra Juliana, minha neta)

Paraíso que só a si se iguala,
aqui habitam os citadinos,
e os da roça, os caiçaras,
em convívio e comunhão,
como se corpo único e total,
esparramado entre o sertão,
e o litoral, nos descampados
e pampas, nas caatingas
e restingas, em Brasília,
em cada ilha, nos recôncavos
e nas florestas de araras,
papagaios, gaviões e mochos,
entre floradas multicores
de manacás e ipês roxos.

Pacíficos e sem cobranças,
aqui se amasiam os iates
e as canoas, adultos e crianças,
os carrões e a carroça,
o latifúndio e a roça, as mansões
e os casebres, as raposas e as lebres,
as bandeiras brancas e os canhões,
os civis e os batalhões,
em atestado que sangue só nas veias,
embora nos queiram em contrário.

Sim, há os que nos querem por peias,
os que estão no nosso avesso,
em antítese do que somos:
um país de ladrões e salafrários,
de especuladores e estelionatários,
oposto a este que a si se ostenta,
fisgando peixes ou deitando a safra,
erguendo imóveis, em tratores,
colheitadeiras e automóveis.

Exportando bens e valores,
este é um país hidratado em suor,
que se faz novo nas mãos do povo,
em cada máquina e cada colheita,
no trabalho diuturno e persistente,
arregimentando toda a gente.

Mas eis que súbito surge o clarim,
em prévio aviso do tudo permitido,
e todos, o declarado e o escondido,
o até ontem santo e o depravado,
o de mãos calejadas e pés desnudos,
os de pompas e anéis dourados
se misturam em cordões e em entrudos,
blocos, escolas de samba, tudo bamba,
fazendo da alegria coisa normal,
numa retalhada e colorida colcha
chamada carnaval.

Francisco Costa
Rio, 17/02/2015.
*Escrevi este poema na terça feira de carnaval, em plena folga, distante da realidade, numa paradisíaca reserva ecológica. Ele bem dá a ideia da amistosidade do nosso povo, uma amistosidade que está sendo desconstruída por cães raivosos, liderados pela mídia, a serviço de interesses escusos. Dediquei-o à minha neta, que estava próxima de mim, no momento em que escrevi, e que também gosta de escrever.

Amo-te de amor tanto e tão desmedido
que mais amar eu não conseguiria.

Essência que a mim se impõe, esse amor
dissipa penumbras e escuridões, colore
o que se pretendia cinza e obscuro,
mal delineado, semeando vontades.

Isso que me habita e de mim me rouba
só pode ser amor, esse não se sabe o que
impondo as suas leis e vontades,
reduzindo-nos, instrumentos de desejos,
a desejo único, ser o outro, estar no outro,
como se o outro, tudo, a claridade posta
nas manhãs que contêm o mundo.

É desse amor que me sofro e me morro,
ardendo chamas que me consomem
um corpo limitado atrás de complemento,
um coração que, por amor, não cabe em si,
abarcando tudo, do nada ao infinito
porque todo o infinito reside em ti.

Francisco Costa
Rio, 22/02/2015.

ADULTÉRIO

Hora  de eu me ir, até mais,
daqui a pouco o teu marido chega,
não me quero vítima nem agente
de crime passional, cara no jornal,
essa gente atirando as pedras
que não procuraste nem mereces.

Dirão apenas traidora, vagabunda,
a puta que não presta, sem saberem
dos polares ventos que sopraram
sobre ti e tua cama, por anos e anos,
desafiando a tua fidelidade imposta
por princípios, ordenando quieta.

Das tuas lágrimas de solidão, da dor,
nada dirão, avaliando no rótulo,
sem saber da essência ferida e só,
tateando carícias no escuro.

Não sabem que sobre ti pesaram
as aparências, o que dizer à família,
as convenções, castrando os dons
que enamorado descobri.

Menos sabem das tuas descobertas,
do acordar num corpo feminino,
capaz de gozos e êxtases, de voos
onde a alma humana se realiza.

Jamais saberão que a tua nudez,
parcial porque vestida de vergonha,
é agora devocional e completa,
livre da peça última que te vestia,
o pudor inquilino da desconfiança
que em ti habitava, mal amada.

E por nada saberem, segredo nosso,
te porão a nu à moral, criticando
o que adormecido acordou e vive,
mais querendo viver intensamente
porque só agora, tardia, se exerce.

Por isso é melhor que eu vá,
mas volto. Prometo. Até mais.

Francisco Costa
Rio, 25/01/2015.

ENCONTRO

Você, menino que carregava o mundo
no sorriso que ostentava, sagrado,
como um pátio de esperanças
esperando que todos entrassem.

Você, safra de coisas novas, anúncio
de possibilidades insonhadas, rio
de vertentes iluminadas, de nascente
onde os homens não pensam, sentem.

Você, artifício de magia, matriz de poesia,
orgia de sentimentos mal declarados
porque novos e diferentes, mais bonitos,
escorrendo do lirismo que em você havia.

Você tão você, tão cheio de vida,
porque marcar encontro nessa idade,
semeando indignação e saudade,
vítima de uma bala perdida?

Francisco Costa.
Rio, 23/01/2015.

Estrangeiro migrado de mim,
percorro os meus labirintos,
os obscuros cantos de antes,
os claros caminhos de antes,
as saídas que não encontrei.

Devoluto e sozinho, migro-me
à própria essência, caramujo
em concha, berço e túmulo,
apartado do resto do mundo.

Minhas janelas estão fechadas,
as portas dão para o nada,
o telhado oprime,
as paredes prendem.

Irreconhecível aos meus olhos,
debulho-me pedaços do que fui,
os que restaram e flutuam aqui,
em versos curtidos na saudade,
prenhes de emancipação tardia
quando, menino de novo, novo,
eu me reassuma integralizado
nos primeiros passos tímidos
do que se anunciará calvário.

Francisco Costa
Rio, 23/12/2014.

Linha a linha delineio-me
arquétipo do desespero,
impostura que me assola,
em negação do que sou.

Existem possibilidades, eu sei,
de novas manhãs e amanhãs,
de mais pássaros na cumeeira
e jardineiras floridas nas salas,
mas em mim persiste a tristeza,
esse olhar baço, apagado, inútil,
impróprio às cores e à claridade.

Pode ser que adiante, mais além
eu me redescubra o anterior,
o que amava em versos
e em versos cultuava o amor.

Mas ainda não, não agora.
Esqueci o meu sorriso
em algum canto de outrora.

Francisco Costa
Rio, 23/01/2015.

ODE AOS PANCADAS
(E todo poeta é um pancada)

Maluco, nem beleza nem furioso,
maluco em toda a sua grandeza,
farejando tudo, muito curioso.

O que se enternece e ri com filhotes
de todos os bichos, até dos humanos,
e cultiva palavras nos canteiros papel.

O que porta flores e bilhetinhos,
atento às moças que passam
e aos passarinhos nas árvores,
na fiação elétrica, nos poemas
que se consolidam loucuras.

Maluco sim, doidivanas, treco,
alienado, vinte e dois de plantão,
totem que se ostenta na praça
dos três prazeres, nas quaresmas
suburbanas de cadáveres e tiros,
no carnaval dos comícios e greves.

Maluco total, o que se ri do pânico
e chora meladas lágrimas na fome,
na dramaturgia das carências
postas peças constantes no palco,
mais que palco, da coxia à plateia,
irmanando famintos e cúmplices.

Louco, complemente despirocado
ziguezaguEando no trânsito,
no tráfego dos satisfeitos,
no tráfico dos suicidas sorrindo
em holocausto às moedas.

Tantã, zureta em piruetas e risos
para manter-se vivo, anunciando
solares verdades em dias claros,
inundando de cores e travessuras
os sérios, imunes às loucuras
que colorem o hiato rápido e curto
entre o nada antes de nascer
e o nada depois de morrer.

Pancada, conde, doido varrido
em peripécias e malabarismos
para se fazer entendido,
não mais que o grito de liberdade
que os insanos mantêm escondido.

Francisco Costa
Rio, 21/01/2015.

Orgia de instintos,
Ela não se basta em si,
Em permanentemente
Busca de complemento.

Mal dissimula necessidades,
Os imperativos da carne
Impondo procura constante.

Quem a vê assim, distraída,
Não sabe o que esconde,
Avalanches de carícias
E tormentas de prazeres
Submetendo a quem encontra.

Fêmea em estado máximo,
É sagração à volúpia e ao êxtase,
Uma oferenda ao deus amor.

Francisco Costa
Rio, 02/06/2014.
Os meus melhores momentos
Os ostentei de peito nu,
Em exposição ao vento.

Precoce atleta frustrado,
Seminu fiz gols, saltei cercas,
Apossando-me da infância,
Na coleta dos frutos mais doces.

Cresci avesso a camisas e blusões,
Ostentando-me natural e simples,
Arquitetura de muitos ossos
E carne pouca, quase nenhuma.

Avesso a disfarces e dissimulações,
Sempre que me vesti inteiro
Me permiti só um pedaço,
Criteriosamente escolhido.

Mesmo quando me recolhi
Em contrita oração
O fiz de peito nu.

Camisas são máscaras do coração.

Não repare então
Se eu recebê-lo assim.
Só com a porteira aberta
Pode se observar o jardim.

Francisco Costa.
Rio, 31/05/2014.