quinta-feira, 27 de junho de 2013

BIPOLAR

Busco em mim o que me faz dois,
bipolaridade em exercício, gêmeos
univitelinos num corpo só, siameses
partilhando coisas tão diferentes.

Apresentaram-me Beethoven, Bach,
Mozart... Toda a sonoridade maior,
capaz de nos inscrever superiores,
diferenciados em toda a criação,
e no entanto me quedo malemolente
em canções sertanejas e sambinhas
nas manhãs ensolaradas de domingos,
recreio na minha razão.

Mostraram-me Picasso, Rembrand,
Da Vinci, Rafael, Van Gogh, Dali...
e no entanto babo diante de um naif,
de artesanatos primitivos e simples,
confeccionados por mãos anônimas.

Corri os corredores e becos do poder,
discuti com senadores, deputados...
temerosos da minha ferina oratória
nos palanques das necessidades,
à frente de greves necessárias, paredes
postas no que presumiam ordenado,
mas amo conversar o trivial, o vazio
de intenções que não outras que falar,
falar, falar...  Sobre qualquer coisa
que não signifique absolutamente nada,
partilhando com os desconhecidos
a beleza simples do desconhecimento.

Em talheres e bons modos, com finesse
experimentei lagostas, sushis, caviares,
mas seduzem-me mais as feijoadas,
os angus a baianas, rabadas, chouriços
de cheiros ativos e temperos exagerados.

Vi postais que seduziram e encantaram,
alimentando sonhos de viagens e incursões
em sonhos impressos, mas seduz-me mais
as paisagens litorâneas de minha pátria,
a flora e a fauna, suas mazelas erguidas
pela natureza e mantidas pelos dirigentes:
secas, inundações, tempestades tropicais
atestando a fragilidade da condição humana.

E mesmo quando um texto meu é publicado,
ou um quadro exposto, mostrado, dissecado,
premiado, colocado em destaque, admirado,
proibo-me à vaidade e à soberba inúteis
porque habita em mim, lúcida e onipotente
a consciência de que essas flores literárias
só são possíveis porque nutridas por raízes.

Em jarros, nas salas, exposições, altares...
As flores têm vidas curtas, limitadas.
Vidas longas, só se estiverem plantadas.

Francisco Costa

Rio, 07/04/2013.

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