Conheci um
homem a quem proibiram sonhar.
Nascido em
fazenda, herdeiro de latifúndio,
Ainda em
cueiros se viu órfão, expulso da terra.
Quase mais
velho de vasta e variada prole,
Fez-se
interdito a cadernos e livros, escolas,
Porque de
exigência a marmitas e patrões,
Em busca de
pão para a partilha doméstica.
Em permuta
adolescente, não viu namoradas
E se fez
distante ao que edifica e constrói,
Em trabalho
permanente que, na infância
Amputa,
subtrai, limita, mata, corrói.
Sem opções
capazes de iluminar o futuro,
Viu na farda
opção única de vida tranquila
E se
orgulhou cabo do exército brasileiro.
Mas das
hostes infernais, em maldição e ódio,
Das
fornalhas de satanás brotou o nazismo,
E este homem
foi arregimentado combatente.
Conheceu a
neve e a fome, o frio e a morte,
Todas as
desgraças possíveis e ao alcance,
Plantando
pesadelos que se fariam eternos.
Morto o
suástico monstro, apodrecida
A pretensão
de domínio e extermínio,
Com a carne
rasgada e mais rasgada a alma,
Esse homem voltou
para casa, para sonhar.
Mas não pode
o sonho os sempre acordados.
Posto em
baixa compulsória, como todos,
Não cabem
loucos no exército brasileiro,
Vil e
covardemente expurgado, como todos,
Viu-se às
voltas no desemprego novamente.
Motorista de
carros de combate e jipes,
Adestrado na
perícia de solos irregulares
E pântanos e
neve e campos e florestas
Desafiando
perícia no domínio da máquina,
Viu-se em
veículos outros, em ônibus,
No monótono
itinerário constante e repetitivo.
Logo o
consolo mascarado em justiça social:
Um emprego
público com função subalterna,
Mãe da
continuada miséria iniciada na infância.
E conheceu a
musa, talvez a pretendida sempre,
Desde o
tempo que ele supunha infância.
E construiu
cinco filhos erguidos da pobreza
Renitente, diária,
constante, permanente,
Apontando:
isso não vai dar certo.
Temperamental,
de nervos a flor da pele,
Sobre suas
retinas as flores no quintal
E tanques, e
cadáveres, as bombas, os gritos
E os filhos,
a esposa, a necessidade de persistir.
Persistiu, ora
no pesadelo da realidade,
Ora nos
sonhos do álcool, talvez em fuga
Para a
infância, em retorno para se reerguer
O menino que
não foi, mastigado pelo mundo.
O viver nos
limites da sanidade mental,
O álcool, o
tabagismo inveterado,
As dores
impostas, mais as que se impôs
Impuseram um
caranguejo voraz, faminto
A roer-lhe a
garganta e a possibilidade de futuro.
Logo
metastaseou-se, deu cria e se espalhou,
Fazendo
ninho em cada órgão e víscera,
Até que numa
quarta feia de sol livrou-se.
Hoje acordei
na infância. Se vivo fosse
Ele estaria
em festa, aniversariando
No dia de
São Pedro, seu xará,
Como ele,
amante do mar e da pesca,
E eu estaria
menos pobre, de chinelinhos
E shorts,
chapéu de palha, correndo em risos
entre
fogueiras e rojões, balões...
E tudo o mais
que me foi interdito:
Guloseimas,
refrigerantes, cidadania infantil.
Hoje acordei
partido, saudoso, meio amputado,
Encarcerado
no menino que persite em mim.
Esse homem era
(é) meu pai.
Francisco
Costa
Rio,
29/06/2013.