terça-feira, 2 de julho de 2013

UMA HISTÓRIA REAL, MEIO POEMA, MEIO PROSA, COMIGO TODO PROSA

(Pro Leone, o meu temporãozinho, meu pedaço mais velho)

Você acredita em pré existência,
Em programação de vida,
Compromissos espirituais
E coisas que tais?

Pois atente para minha história,
Real e que se cumpriu:
Adolescente, perdido em livros,
Precoce poesia, encantos, meninas e bailes,
Em curiosidade e espanto
Engravidei uma delas.

Por essa época eu amamentava sonhos
De me fazer piloto de jatos, sonhos
Persistentes que ainda hoje cultivo.

Aluno aplicado, pronto para a academia,
Para a farda e os aviões, o imprevisto:
Uma gravidez de adolescentes
Em período de puritanismo preconceituoso.

Vieram rápidos, racionais e frios
Todos os dedos da família, dos amigos,
Do mundo: aborto!

E o meu dilema  shakespeariano:
Abortar ou não abortar, eis a questão!

Chego em casa e cumpro o ritual:
Banho, janta, sono... Que nesse dia não veio.

Súbito surpreende-me estranha voz,
Doce, melodiosa, infantil, angelical,
Falando-me não aos ouvidos,
Mas direto no cérebro alterado,
Entre a vigília e o dormir.

Pouco lembro do muito dito e aconselhado,
Exceto de dois detalhes: “você esquecerá de tudo
O que conversamos, mas usará sempre,
Em toda a sua vida” e “não faça isso
Que querem que faças.
Você nasceu para viver entre nós,
Viverá entre nós, e quando estiver voltando
Um de nós estará em sua cabeceira.”

Atônito, não entendi de imediato,
Até um estalo instintivo, antes que eu entendesse:
Fui à casa da menina: você não vai abortar,
Nós vamos casar. E nos casamos.

Adeus academia militar, adeus aviões,
Até logo livros, até já novas aventuras.

Logo pai de uma menina, mais irmã que filha,
Tanta a proximidade de idades,
Vi-me de mãos em tudo capaz de virar leite,
Sopinhas, pediatra, responsabilidade de adulto
Compulsório, necessário, obrigatório.

Em um belo dia, mais um de parcas moedas
E necessidades muitas, providencial amigo:
- Não quer dar umas aulas de ciências?
Coisa fácil, você é bem falante e leitor compulsivo,
Coisa fácil pra você. E por precisar, aceitei.

Logo, com a timidez que cala e enregela
Eis-me diante de 28 pares de olhinhos,
56 olhinhos atentos em mim escrevendo no quadro,
Até que, tomado do que nunca saberei o quê
Abandono livros, giz, quadro, tudo e me torno outro,
Falando da natureza, entre lepidópteros e flores,
Cascatas e movimentos estelares, organismos e átomos
E o que falo vem de dentro, já não sou eu, mas outro
O que em mim habita em partilha com todos.
Eu nasci educador e não sabia.

Foi a primeira aula de todas as que se seguiram,
Em todos os níveis e todas as escolas, colégios,
Universidades... O que não bastou, se estendeu
Em cursos, seminários, entrevistas, palestras...

Passei três quartos da minha vida falando para crianças,
E a voz mágica e adocicada da minha adolescência
Fez sentido pela insofismável prova:
“Você nasceu para viver entre nós, viverá entre nós
E no momento em que estiver voltando
Um de nós estará em sua cabeceira.”

Logo vieram os netos e passei a imaginar qual seria,
Até que enviuvei, a providência chamando antes
Um pedaço meu amputado, justo o meu melhor pedaço.

Mas há que se continuar aqui, em provimento
Às necessidades da carne, e casei de novo.
E então o que fora anunciado a mais de meio século
Se anunciou: dei à minha neta já adulta mais um tio.

E olhando aquela barriga, depois aquele berço
Entendi tudo o que fora dito naquela quente noite:
Já em vésperas de terceira idade, sem esperar nada,
Em aguardo da morte, colecionando poemas,
Nasceu Leone, o meu caçula na carne,
O de gravidez mais longa, de mais de meio século.

E tudo fez sentido: “não faça o que querem que faças”,
O aborto; “você viverá entre nós em toda essa existência”,
Tornei-me educador; “quando estiver voltando
Um de nós estará em sua cabeceira”, Leone,
Que hoje aniversaria, seis anos comigo,
E ao qual me rendo mais que complemento meu,
Mas profecia de felicidade que se cumpriu.
Que Deus o abençoe, meu filho.

Quanto ao que não entendo, só suponho e especulo,
A minha mais profunda gratidão, por ter me permitido
A realização, deixando que viessem a mim as criancinhas,
Muitas, centenas, milhares, por uma existência inteira,
Culminando no nascimento do meu filho mais velho,
Quase da minha idade, e que hoje completa seis anos.

Quando as lágrimas são filhas da felicidade
Com a realização não têm explicação.
É aproveitar porque são raras e ocasionais,
Choradas não com os olhos, mas com o coração.

Francisco Costa

Rio, 4/6/2013.

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