terça-feira, 14 de maio de 2013

O DUPLO


Eu não sou esse.
Eu sou o que viaja nas estrelas
E cansado deita na lua
Embalando-se numa sinfonia
De sabiás e bem-te-vis.

Sou o que com as mãos
Arranca a seiva do chão
E em  preces a leva
Ao fruto mais fecundo,
Para que o dia acorde
Numa explosão de luz.

O que traz em si
A chaga ungida do inconformismo,
A cicatriz da rebeldia
O cansaço dos que se imaginam
Próximos do sono  reparador,
Recheado com a imagem
Da mulher destinada,
A que procuro  em cada corpo.

Sim, eu não sou esse.
Sou o que nasceu
Para malbaratar a própria dor,
Espargir sonhos de difícil realização,
Edificar escombros  do que já  não cabe
Por antigo
E de uso dos que já morreram.

O que espia pela frestra do tempo
E o que vê não pode ser dito porque
Longe do shopping e não anunciado na televisão.

O que se sabe tosco, mambembe, mal acabado,
Reduzido a puro instinto
E sentimentos absolutos.

O que roga e só escuta o silêncio,
O que pede em vão, o que morre em cada minuto,
O que mente quando diz que não é esse
Porque o outro é quem queria ser.

Francisco Costa
In “NÃO HAVERÁ MAIS NATAIS”, romance, Francisco Costa, 2011.

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