Quase o
único a não se permitir à televisão,
a não ter um
televisor na sala, me olhando,
todos me
olham como se diferente, aleijado,
com um órgão
a menos, mutilado.
Mas não
tenho como fugir, estão por aí,
nas lojas de
eletrodomésticos, nas ruas
nos
restaurantes e pensões onde me abasteço,
nos quartos
de motéis... Onipresentes,
íntimos, nos
assistindo nas refeições e no sexo.
Se visito um
amigo ou parente, conhecido,
conversamos
sempre a três, eu, ele e ele,
o televisor
ali intrometendo-se, interrompendo,
chamando a
atenção para si porque alter ego.
Ontem, em
visita de cortesia a aniversariante,
fui
compulsoriamente levado ao Jornal Nacional,
cartilha que
norteia o sentimento e a opinião
de duzentos
milhões, como se fosse natural.
Em livre
exercício de visão crítica e analítica,
de imediato
percebi a importância do evento:
ao invés de
fazer uso do seus repórteres de campo,
fosse da central
ou de uma emissora afiliada,
mandaram o
apresentador do principal telejonal,
que também
acumula os cargos de editor de si mesmo
e diretor de
telejornalismo da Rede Globo de televisão,
como se o
próprio apocalipse estivesse em ação.
E o que
assisti foi de dar náuseas a qualquer mortal,
desde que
não amestrado, condicionado, preparado
a periférico
de tal horror, o chamado telespectador.
Como se
fosse brinquedo em mão de criança,
manipulável,
um simples ioiô, a partir das vontades
(ou
conveniências) de editores e redatores,
do lado de
cá da tela fomos jogados para lá e pra cá,
numa
sequência de imposições de sentimentos
alternando-se
em segundos, breves, superficiais,
sem maior
aprofundamento, por que vivemos tempo
de
informação e não de formação, de ter e não de sentir:
Imagens da
fachada cabonizada, corta;
uma mãe
chorando desesperada, corta;
o comandante
do corpo de bombeiros esclarecendo
que no
prédio estava tudo ok, corta: velórios, corta;
taxista
afirmando que prestaram socorro, corta;
secretário
da prefeitura contraditando o bombeiro,
alvará
vencido e ausência de fiscalização, corta;
uma
psicóloga afirmando que uma das mães, enlouquecida,
não admite
reconhecer o filho no caixão,
dizendo que
ele virá vê-la já, corta;
Dilma
dizendo que tal fato não se repetirá, corta;
com
indiferença técnica, uma maquete do imóvel, corta;
outra mãe
chorando, corta; corpos mortos, corta;
depoimentos
não complementares, contraditórios, corta;
e o meu
coração atônito, sem partilhar com o cérebro,
ambos buscando
a acomodação na surrealidade posta
na tela, no
mundo, no momento, como se diante de cartas
exigindo
ordenamento em naipes, sequências, lógica.
E
estupefato, atônito, o poeta perdeu a oportunidade
de contar
quantas vezes o empostadamente consternado
apresentador
afirmou: “nós, da Rede Globo de Televisão”,
“a equipe de
jornalismo da Rede Globo”, “nós, da Globo”,
“os
cinegrafistas da Globo”, “o plantão da Globo”,
fazendo da
Rede Globo de televisão o sujeito do fato,
e da
tragédia, predicado. A emissora, principal,
todo o resto
calcinado, morto, em escombros, complemento,
acessório,
oportunidade midiática, comercial.
Seguiu-se a
novela, pão nosso de cada dia, comerciais,
e, aí sim, o
programa com padrão Globo de qualidade:
bundas,
sexo, filosofia de puteiros e botequins, preconceitos
ancorados
pelo maior intelectual do momento,
o guru
formador de opinião, cujas pérolas pronunciadas
deveriam
constar em todas as antologias do torpe, do ilógico,
do
imcompreensível: “esse zoológico humano”, “esses heróis”,
referindo-se
à casa dos horrores mentais e seus habitantes.
Voltei pra
casa, e envergonhado com o que me permiti,
me descobri
um simples palhaço chorando,
acumulando
indignação bastante e doída
para redigir
esse pretenso poema.
Francisco
Costa
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