terça-feira, 7 de maio de 2013

EPOPÉIA DE INSISTENTES


Perdão irmãos, continuamos a semear cadáveres,
a empalá-los no que consideramos atos heróicos,
vergonha que não mancha consciências e morais,
justificam-se como atos necessários do vencedor.

Perdão pelo continuado genocídio, pela covardia
estampada em livros, calada no peito dos assassinos.

Perdão pelo nosso infanticídio em suas aldeias,
pelo estupro em suas mulheres, pelo semear mortos
nos chãos das florestas, nas areias das praias e lagos
e, hoje, pelas surras nas cidades, aldeias de loucos.

Ainda no império, o colonizador de vastos bigodes,
estranha vestimenta, arcabuzes e caravelas,
 falar diferente, e estranhos hábitos europeus,
investiram em cima, ora em ataque aberto,
hora manuseando a diplomacia, a negociação
da mentira, do engano, do engodo, do estelionato
travestido de promessas jamais realizadas.

Perdão pela ação dos Jesuítas, José de Anchieta
puxando o cordão, tuberculoso em pronto contágio
escrevendo à Roma, para dar conta que morriam,
“milhares deles à conta do Senhor”, conforme dito
em correspondência do Apóstolo do Brasil ao Papa.

E não há perdão que pague ou justifique o extermínio
contumaz, continuado, permanente, diuturno,
reduzindo-os de doze milhões a trezentos mil
espalhados nas periferias das cidades, em favelas,
palafitas, lixões, apodrecendo em vida,
 testemunho de uma civilização que agoniza.

Estranho os civilizados, que preservam passarinhos
e exterminam homens, prendem caçadores
e dão salvo conduto a homicidas, assassinos.

Em debandada, os colonizadores de além mar,
levaram de volta todos os seus crimes e o botim,
 tão eficientes em suas lições de matar e pilhar
que deixaram discípulos aplicados, mais cruéis,
encurralando-os em feudos miúdos, retirados,
de territórios insuficientes para a sobrevivência.

E vocês se dispersaram, desfizeram famílias,
apartaram amores, viram órfãos de pais vivos,
viúvas de maridos distantes, cadáveres respirando.

E vieram os seringueiros invadindo territórios,
profanando terras sagradas, pisoteando tradições,
mastigando vínculos culturais, laços de comunhão.

Sangraram árvores e gente, criando pneus, artefatos
bélicos retornando às aldeias, para prosseguir
no mister de semear corpos mortos, abandonados.

Foram-se os seringueiros e vieram os madeireiros,
os garimpeiros, as mineradoras arrancando do solo
as últimas raízes que insistiram em ficar, dispersas.

Caçaram recém nascidos nas redes e colos maternos
como se caçam pássaros nos ninhos, peixes na água,
para sanguinolentas refeições, macabros repastos.

Conforme testemunhos, pegaram crianças pelos pés
e em ritual de matança, como fazemos com animais,
 lhes esfacelaram os miúdos e inocentes crânios
contra troncos de árvores, impedindo gerações
futuras de resistência no caminho do progresso,

quando não em atitudes meritórias de doações:
calças, camisas, lençóis, redes, vestidos, cobertores...
Em aparente caridade no ritual da piedade,
para logo descobrirem que vindos de hospitais,
asilos, leprosários... Disseminando pestes, doenças,
mais instrumentos de genocídios, deliberadamente.

Em novas hordas de bárbaros, não bastassem
seringueiros, madeireiros, mineradoras...
Chegou a sociedade organizada, a institucionalização
do assassinato como modus vivendi, coisa natural,
e os rios subiram, inundando taperas,
afogando malocas, exterminando aldeias, tabas,
dispersando povos inteiros, como judeus no exílio,
sem direito a fim de Diáspora, sem armistício,
trégua, direito de recomeçar, apartados de si
por enormes hidrelétricas, dilúvio humano
sem direito a páscoas e Noés, reedificações.

E vieram os de agora, depenando as matas,
tosquiando o solo, depilando as árvores
e tudo o que se anuncia verde e farto,
para deitar milhões de quilômetros quadrados
de planta única na paisagem morta, homogênea,
só de soja alimentando a Ásia e a Europa
hipocritamente clamando pela preservação.

Mas havia aldeias, tabas, tendas, ocas, malocas...
E propinas, tiros, tratores, intimidação, assassinatos
cuidando da ocupação, do plantio, da construção
do complexo da soja, com fazendas tão grandes
que percorrê-las só de avião, maiores que países,
nas mãos de um proprietário ou de uma família,
toneladas de agrotóxicos passeando nos rios,
excursionando no solo, em holocausto da fauna.

Mas aos fortes não bastam derrotas para a rendição,
a guerra haveria de continuar, até que o último
expirasse, em atestado de centenária covardia
em curso, em pleno exercício do extermínio.

E buscaram armas novas, infiltrando seus jovens
entre civilizados, para aprenderem as suas letras,
esmiuçarem as suas leis, destrinchar-lhes a lógica
que derruba florestas para construir shoppings,
aterra mananciais, desenterra minérios do solo
para enterrá-los em cofres, mija, caga e cospe
na água que irá beber, e mata para justificar.

Vieram para a cidade de São Sebastião
do Rio de Janeiro e se hospedaram em casarão
testemunho do antigo, do ontem que continua,
no Museu do Índio, esparadrapo na consciência
do branco sangrando o passado e o presente.

Em plena capital cultural do país ousaram
e estabeleceram uma aldeia de índios
universitários, índios intelectuais, índios
prontos para as armas dos civilizados.

E chegaram as Olimpíadas, os mesmos jogos
do medievo animando as arenas gregas, romanas,
mostrando o caminhar para o mesmo lugar,
a permanência no passado, no berço dos crimes,
sem ter como se alçar em vôo de coisa nova
o mesmo homem que abandonou as cavernas
de granito e sombras para construir cavernas
de vidro e aço, iluminadas, para alojar o mesmo.

Por supérfluos e destoantes da razão citadina,
o excelentísimo senhor governador do estado
achou por bem transformar o museu do índio
em museu das olimpíadas, varrendo-os
em definitivo do imaginário da civilização.

Por considerarem aquele lugar sagrado
porque em culto às suas divindades e antepassados;
por considerarem inviolável porque, sendo povo
apartado, funciona como casa diplomática,
embaixada, território protegido em convenção
internacional, da qual somos signatários,
os índios decidiram não sair.

A Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro
mobilizou todo o seu aparato de conflagração,
com as tropas de choque, de elite, inteligência...
Municiadas de gás lacrimogêneo, de pimenta,
bombas de efeito moral, cassetetes, revólveres,
pistolas, rifles, metralhadoras... E ódio, fúria.

A logística e a estratégia que deveriam ser usadas
contra quadrilhas de corruptos na capital,
contra quadrilhas de defloradores de crianças,
contra narcotraficantes, contrabandistas,
só serviu para desalojar algumas dezenas de índios
mal vestidos, em shorts, bermudas, e cocares
de penas, entre as próprias tradições e o novo.

A mídia lastimou a interrupção do trânsito,
cronistas louvaram o êxito da operação,
a imprensa ostentou as fotos dos bárbaros
desalojados do seu último bastião de resistência.

Vitória da civilização.
Mais uma lágrima em quem tem consciência
e coração.

Francisco Costa
Rio, 22/03/2013.

Um comentário:

  1. Causa-me um mal estar...sentimento retrógado diante de tamanha covardia, falta de respeito..." Vitória da civilização.
    Mais uma lágrima em quem tem consciência
    e coração." É, no mínimo, vergonhoso...deprimente! Abraços poeta querido <3

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