Se era para me dividir,
podiam
Servir-se de muitos
expedientes.
Poderiam, por exemplo,
Amputar-me uma das pernas,
mas,
Ainda assim eu me valeria
De muletas, de uma perna de
pau,
Uma prótese, ou saltitaria
num pé só,
Como um batráquio exótico,
estranho.
Mas a minha alma continuaria
inteira.
Poderiam amputar as duas
pernas
E eu usaria duas muletas,
duas próteses,
Duas pernas de pau, ou uma
cadeira de rodas.
E, cyborg compulsório, ainda
assim
A minha alma continuaria
inteira.
Poderiam arrancar-me um olho
E eu perderia a noção de
perspectiva,
Avaliaria mal a profundidade
do espaço
E seria confusa a posição
relativa dos objetos,
Mas a minha alma continuaria
inteira.
Poderiam arrancar-me os dois
olhos,
Lançando-me numa noite
permanente
De objetos sem cores e de
formas presumidas,
Só de sons, cheiros e
imaginação.
Mas, ainda assim, tateando na
negritude
A minha alma estaria inteira.
Arrancassem-me o braço
direito
E num supremo esforço eu me
tornaria canhoto.
Arrancassem o esquerdo, o
direito perderia
Prestimoso auxiliar, mas aprenderia
a se virar
Sozinho, tornando-se amigo do
queixo,
Com a minha alma continuando
inteira.
Amputada a língua, eu
continuaria escrevendo,
Desenhando, gesticulando as
minhas intenções,
Os meus desejos, as negativas
e necessidades,
Com a alma íntegra,
totalmente inteira.
Arrancadas as orelhas, eu
ouviria difuso,
Sem noção da posição de
origem dos sons.
Surdo, eu aprenderia a
linguagem muda do mundo,
Servindo-me de minha alma,
ainda inteira.
Até mesmo castrado eu
surpreenderia a parceira,
Fazendo-me todo órgão sexual
em exercício
Porque amamos com a alma,
E a minha estaria amando
inteira.
Poderiam, num esforço supremo
de crueldade,
Apartar-me de uma das metades
do meu cérebro.
Fosse a metade emocional, eu
me tornaria um robô
descrevendo matematicamente
cada sentimento,
explicando as relações
humanas por equações,
com a alma devidamente
digitalizada, mas inteira.
Fosse a metade racional e eu
me transformaria
Em só sentimentos, só coração
a comandar a vida
Posta a disposição da minha
alma sempre inteira.
Só não poderiam me apartar do
meu filho porque
Esta é uma tentativa de
amputação de outra ordem,
No mais íntimo da alma e a
alma é indivisível.
Doa-se por inteira, nega-se
por inteira,
Deseja por inteira.
Se tentam subtraí-la de parte
de si
Não resiste. Definha, agoniza
e morre.