quinta-feira, 3 de abril de 2014

OS DITADORES COMIAM ALFAFA

“Nunca espere que um militar pense.”
(George Bernard Shaw)

Eu poderia falar da tortura como instituição,
A mórbida necessidade de despir o homem
Do que o faz humano, reduzindo-o a nada,
A uma carcaça de pele e ossos sem vontades.

Eu poderia falar de milagres econômicos,
Da doação de muito a troco de pouco,
Mas em quantidade tanta que permita
O crescimento dos tomadores de créditos
A serem pagos pelos que não usufruíram.

Eu poderia falar da humilhação da rendição,
Do servir de pasto internacional, pisoteado,
Em oferenda de minérios e colheitas, safras,
A preço vil e quantidade ilimitada, sem fim.

Eu poderia falar da expropriação do trabalho,
Da radical fabricação de miseráveis, pobres,
Dos milhões de mortos de fome e carências,
Dos menores salários da história republicana.

Eu poderia falar da corrupção em voracidade
De saque continuado: Ponte Rio-Niterói, Angra,
Nióbio de Araxá, Manganês da Serra do Navio,
Ouro de Serra Pelada, escândalo Coroa-Brastel,
Conta CC-5, da fabricação de milionários, ricos:
Bonhausen, Maluf, Sarney e os mais muitos.

Eu poderia falar do arbítrio, da revelia, do revel
Das leis, do fim do Habeas Corpus, das eleições,
Com nomeações de senadores, governadores...
Dos mais incompetentes e alinhados em posse
De secretarias, autarquias, estatais, diretórios...
Onde houvesse um generoso livro caixa aberto.

Mas acampo em aspecto outro, o do ridículo,
Do risível, da mediocridade em estado máximo
Exercitando-se na censura, na castração, na poda
Do que se insinuasse pelo menos vestígio
De qualquer coisa cheirando a inteligência,
Sensibilidade, inspiração, liberdade criativa.

Os ditadores odiavam o que não entendiam,
E só entendiam de armas e ordens unidas,
Então era a tesoura podando frases e versos,
As canetas hidrográficas mutilando palavras,
Os ofícios, éditos, memorandos e portarias
Vetando livros, peças de teatro e até novelas.

Era o sargento analfabeto soletrando Drummond,
Para dizer que o verso era imoral, atentatório,
Porque trazia a palavra bunda, um atentado moral.
O cabo especialista em cem metros rasos, bem raso,
Interditando o que não entendia ou supunha ser,
Para evitar complicações com seus superiores.

A foto da modelo em trajes sumários, recortada
Porque capaz de incitar o sexo, a permissividade,
Incutindo nas crianças o comunismo e a tara,
Nos fazendo imaginar que militar fode de farda.

Neologismos suprimidos, arrancados dos textos,
Porque se não existiam nos dicionários, suspeitos;
E tudo o que não entendiam cortavam, mutilavam,
Reduziam, colocando todos os artistas sob suspeitas.

Orações sem sujeito? Insinuação contra a pátria,
Atentado ao regime institucional, subversão;
Verbos no futuro do pretérito? Drible na censura,
Quando dizem que seria estão dizendo que será,
Falando em código para os intelectuais e resistentes.

Cada censor era um macaco numa loja de louças,
Fabricando cacos, estilhaços, pedaços, partes
Do que nasceu íntegro porque fora da compreensão
De gorilas comandantes e micos subordinados.

E misturávamos ódio pela submissão ao medíocre
Com gargalhas diante da própria mediocridade,
Retrato de um tempo que por lógica e necessidade
Deveria estar morto, mas que sobrevive em saudade,
Em cada peito cruel, sádico, e mentalidade medíocre.

Todo tirano é ridículo, risível na impossibilidade
De submeter o que é maior que ele.
Seus discípulos os imitam, substituindo a razão
Pelo repetir do mesmo, mostrando a nulidade que são.

Francisco Costa

Rio, 30/03/2014.

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