sábado, 19 de novembro de 2016

DÚVIDAS NA MADRUGADA

(Ouvindo Mozart às três horas)

A religiosidade que em mim se manifesta
É feita de dúvidas e desconfianças,
De inquirir e perquirir, conjecturar,
Num vasto oceano de hipóteses.

Invejo os que têm tudo certinho,
Devidamente ordenado e claro,
Acreditando na divindade de acesso fácil,
Exposta em livro autobiográfico,
Embora redigido por homens.

Entre a passividade de coisa criada
E o ser ativo que complementa a obra
Percorro labirintos de incógnitas,
Fazendo-me ponte entre o declarado,
O que se põe explícito e insofismável,
E as derivações dos meus pensamentos.

As religiões existem como rédeas,
Cordões de contenção, paredes e muros
A serem arrebentados e demolidos,
Até que só restem convicções individuais,
Como outrora, entre os nossos ancestrais.

Nossos sentidos são limitados,
Mais escondem que revelam,
E daí a necessidade da busca fora deles.
Mas como imaginar o inimaginável,
Se o que em mim habita e me conceitua
Me chegou por cada um dos sentidos?

Não vejo o ultravioleta e o infravermelho,
Não ouço os infra e ultra-sons,
Não individualizo odores, se misturados,
Nem sabores, quando juntos,
O que só me mostra parte da realidade.

Como então ousar descortinar verdades,
Se elas me chegam parciais e condicionais,
Do tamanho do que sei, embaladas
Em caixas estanques, empilhadas
De modo aleatório e caótico,
Exigindo-me decifração?

Como, sem acesso ao imediato e simples,
Buscar o que se esconde por trás,
Muito adiante, senão infantilmente,
Fazendo do mundo a minha imagem,
Extensão de mim, mas nos meus limites,
Identificando sem fazer semelhante,
Senão pra mim, pobre crisálida
Sem saber das borboletas?

Diante do infinito e da eternidade,
Somos só um acidente cósmico
De curta e efêmera duração,
Buscando-se infinito e eterno,
O que seria só tédio e cansaço,
Não fosse a existência de um Deus
Justificando o que para mim injustificável.

Entre a alvorada do berço
E o entardecer do túmulo,
Intriga-nos e assusta
A noite que não temos na memória.

Francisco Costa

Rio, 23/10/2016.

Nenhum comentário:

Postar um comentário