quinta-feira, 24 de outubro de 2013

MATARAM A INFÂNCIA

Sim, o apocalipse já aconteceu
E o mundo já acabou.

O mundo em que vivi não tinha micróbios,
Partilhávamos pratos e talheres, frutas,
De boca em boca, sem óbitos,
E água filtrada só na moringa de barro,
Revestida de limo por dentro.

Os meninos tomavam banhos de chuva,
Imunes a espirros, pneumonias e viroses
(os vírus não viviam na chuva e o contágio
Ainda não habitava na ignorância de acreditar nisso).

O sexo não era intermediado por preservativos
E as mulheres tinham cheiros individuais,
Sem a padronização dos desodorantes íntimos.

Pescávamos em valas infectas,
Inundando potes com peixinhos e bosta
E não morríamos disso.

Transgressores dos ditos pelos pais,
Violávamos cercas e escalávamos muros,
Na busca do fruto mais doce,
Da carreira mais divertida, da raiva
Do dono do pomar se desfazendo em pragas.

Roubávamos beijos
E descrevíamos o sexo que nunca fizemos,
Entre bolinhas de vidro, papel e bambu no céu
E apelidos criativos, irritantes, com troco.

Cortes nos pés, unhas esfaceladas, sangramentos
Eram estancados com saliva e caretas,
Sem interrupção do jogo ou substituição
Do contundido mancando no caminho do gol.

Depois o esporro materno, o banho da tarde
E as cadeiras nas calçadas, as famílias reunidas,
Comentando o trivial variado.

Agora os meus netos, imunes ao mundo,
Teclam e assistem televisão,
Levam o mundo no celular
E se acreditam na infância.

O mundo já acabou a não avisaram a eles.
O apocalipse que esperam está na tela
E os micróbios ameaçadores
Os contaminam na publicidade.

Eu queria sorrisos,
Eles querem dinheiro.

Eu esperava o futuro,
Sem saber que meus netos
Não teriam as vacinas
Contra a violência e a solidão.

Francisco Costa

Rio, 16/10/2013.

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