terça-feira, 18 de março de 2014

ESCREVER CHORANDO

(MALDIÇÃO DE PARKINSON)

Sabe, velha, fiz ontem a visita
Que vinha adiando sempre,
Em nome da mais absoluta covardia.

Você a custo me reconheceu,
E hoje é provável
Que já não se lembre de mim.

Aquelas mãos miúdas e macias
Que passearam em minha fronte,
Delicadas, quentes, terapêuticas,
Perderam a coordenação motora
E tremem, se agitam, quase saltam
Alheias à sua vontade de que calmas.

Seus olhos se perderam, e alheios
Permanecem nas órbitas
Mas já orbitando o longínquo
Onde não sei nem imagino.

Conversa naturalmente e dócil
Com os nossos mortos e conosco
Sem atinar quem ainda na carne
E quem a espera, atento,
Talvez feliz do reencontro.

Sonhas sonhos absurdos surreais,
Pedindo-me sabonete com ervilhas
Porque com desejos, grávida.
(dos seus tataranetos, minha mãe?)

Seu corpinho encolhe, diminui
E sua capacidade de influir
Já é nenhuma, fazendo-me órfão,
Indigente, sem o último ascendente
A me apontar caminhos e ver menino
Inexperiente colecionando bobagens.

Suas mãos e suas palavras ensinaram-me.
Foram elas que me mostraram tudo:
Como pegar um lápis ou um pincel,
Como folhear livros, como cerrar os punhos
Às injustiças, como gesticular não,
Mas agora... Agora estão inúteis, reduzidas
A simples apêndices que me tocaram o rosto,
Em gesto que jamais esperei, de despedida.

Mas mesmo quando aparentemente
Sem condições de me ensinar mais nada
Você me deu a derradeira lição:
Pode-se dizer na semana que vem eu volto
Quando se está dizendo adeus. Podemos
Sorrir, quando na verdade, disfarçadamente
Estamos chorando ao contrário, para dentro.

Avesso hoje a tudo o que partilhamos,
Inútil e só como um pássaro sem asas,
Faço a minha contagem regressiva
Para o silêncio escuro da orfandade.

Francisco Costa

Rio, 13/03/2014.

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