segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

EU E MEU MENINO

Cerco-me de percalços, deliberadamente,
Fugindo do marasmo que se anuncia chato,
Descabido, afeito a velhinhos de pijamas,
Alisando gatos, curioso do último capítulo
Da novela, do resultado da loteria, do jogo
De ontem, em aguardo da morte próxima.

Recuso-me ao comodismo fácil dos velhos
Despidos da fome de coisas novas, talhadas
Para o dia de amanhã, certo e programado,
Recheado de atividades inusitadas e ações
Interrompidas porque de longo prazo.

Não aprendi do ócio e do descanso, do sono
Fora de hora, quando o dia reclama atos.

Se me ponho na cadeira de balanço, logo
Uma roseira reclama poda, a varanda implora
Vassoura, a água do café ferve no fogo, alguém
Chama no portão, preciso cortar as unhas...
Até o corpo reclamar o aposentar, a inatividade.

É nessa hora que recebo visitas inesperadas,
Multidões de palavras querendo-se ordenadas.

Esquecido do velhinho exausto, desmilinguido,
Chamo o menino que me ajuda e dou a ordem
Para que faça o que não sei mais fazer, esqueci.

Então, quando o dia amanhece, me surpreendo
Com esses poemas surgidos não sei de onde,
Pedindo que eu desvende o que não compreendo.

Há, entre mim e esse menino, uma cumplicidade
De mais de meio século, de tal modo íntimos
Que já não sei mais quem sou eu, morrendo,
E esse menino, permanentemente nascendo.

Francisco Costa

Rio, 14/02/2014.

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