domingo, 5 de abril de 2015

EM AUTO FLAGELO

Quando eu já não estiver aqui,
privando da convivência e dos dias,
as manhãs continuarão ensolaradas
e os banhistas irão às praias, mas eu,
ausência compulsória e definitiva,
permanecerei alheio ao trânsito,
distante das cortes de Espanha
e Lisboa, do Império Britânico
em guerra nos livros de história.

A moça que me experimentou gemidos
estará propensa a novas cortes,
em trânsito entre o remoto distante
e as próximas primaveras e verões,
acessível a novos varões e mais gemidos.

Meus pertences serão distribuídos:
essa coleção de autores marxistas
para o rapaz taciturno e apreensivo,
semeando revoltas e revoluções;
esses tratados de Astronomia e Física
para algum colecionador de estrelas que,
impossibilitado de caçá-las e tê-las,
as corteja pelos poéticos nomes:
Sírius, Cassiopeia, Aldebarã... Viúvas
de noivo que as namorava nas noites;
os tratados de Ufologia e Esoterismo
habitarão as prateleiras e estantes
de algum ente estranho e engraçado,
capaz de conversar com insetos
e pastorear rebanhos de nuvens;
os compêndios de Botânica e Zoologia
desafiarão a dicção do dedicado aficcionado
soletrando Pastrongilus megistrus,
Carassius auratus e Mello pasitacus
ornamentando as páginas com cores e formas;
os dicionários... Distribuam a lanço,
o de rimas e o de tupi-guarani, o de francês,
inglês, espanhol... Os vários de português...
Porque casa sem um bom dicionário
é granito com pretensão de diamante.

Distribuídos os livros, é a vez dos discos,
de retalharem a trilha sonora da minha existência,
sem critérios e complacência, em holocausto
do que em mim foi anexo, embora comigo,
como um farol sonoro clareando o caminho.

Depois as minhas roupas e os meus  odores,
os poucos móveis e os utensílios do atelier.

Saquearão o meu jardim, é certo, à cata
dos enxertos e hibridações que segredei como fiz,
em paciência e dedicação de monge ocupado.

Meus quadros e esculturas irão a leilão diferente,
sem lances pecuniários, mas de exigências e gritos,
para ornamentar paredes de parentes e amigos.

Assim, desfeito o palco da minha performance,
o picadeiro onde me ensaiei no que gostava,
estarei finalmente apagado aqui, disperso,
mas com o mesmo coração em repetição,
palpitando ainda em algum canto do universo.

Francisco Costa
Rio, 29/08/2014.

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