“O inferno são os outros”
(Jean Paul Sartre)
Estranham os que vivem só,
Como se sozinho e solidão
Abraçassem-se, sinônimos.
Podemos conhecer momentos
De solidão, de vazio existencial,
Em passeatas e festas, procissões,
Em plena coletividade reunida.
E não estaremos sós.
O estar só tem a conveniência
Da individualidade mantida
Sem máculas e sem limites.
Quem, acompanhado, ousaria,
Com voz de marreco rouco
Entoar a ária de Carmen, de Bizet,
Inteira, impunemente,
Sem a crítica ou o sorriso alheio?
Quem, chegado do temporal
Pisotearia o tapete da sala,
Sem admoestações e reclamos?
Quem conseguiria, com testemunho,
Conversar com o próprio ego,
Em réplicas, tréplicas, apartes...
Sem que apontado louco, tantã,
Pelo menos em potencial?
Nada como dançar reagle na sala,
Ousar uns passinhos de samba,
Um bolerão de Gatica,
Com a coordenação motora
De um boneco de madeira
Nas mãos de Gepeto, sem críticas,
Como um louco em pleno carnaval,
Ainda que se faça julho ou natal.
Como ordenar o trânsito dos pássaros
Ou reger-lhes as cantorias e trinados,
Se diante de olhares indiscretos,
Pouco parcimoniosos na indiscrição?
Como, digam-me, como ficar quieto,
Absolutamente alheio e concentrado,
Se cada humano é um produtor de ruídos,
Um colecionador de palavras proferidas?
Pior do que a escravidão dos relógios,
A submissão aos calendários,
A rotina de datas e horários,
É o lembrete permanente: está na hora,
É amanhã, daqui a pouco, logo mais,
É na semana que vem, espere um pouco...
Fazendo do pobre um apêndice do tempo.
O sozinho é um rebelde por natureza,
Ao contrário do solitário, acomodado,
Conservador, perpetuando o incômodo,
Em prazeroso masoquismo de doente.
Só no estar só se exerce a plenitude,
A manifestação integral do eu,
Sem rótulos, exigências, expectativas.
Acompanhados somos o que esperam de nós,
Devidamente lapidados das idiossincrasias,
Embalados para consumo, aparados, adaptados,
Prontos para deixar escondido o melhor de nós.
Acompanhados podemos escrever poemas,
Contos, romances, textos de dramaturgia...
Mas jamais sermos hóspedes da poesia.
Como então dizer solitário o sozinho,
O que abriu mão de uma amante no leito
Para tê-la, íntima e constante, no peito?
A diferença entre o sozinho e o solitário
É a do berço e do sudário.
Há os que o cultuam sorrindo
E os que o recusam, também sorrindo.
Uns sorriem só pelo sorriso.
Outros, porque sorrir é preciso.
Francisco Costa
Rio, 29/05/2014.