sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

CANTO TRISTE

Acho que pedi muito a Deus
E Ele foi generoso comigo,
Atendeu a todos os pedidos.

Eu não devia ter pedido nada,
Para conservar a inocência
Que perdi ao ser atendido.

Eu me queria simples e puro,
Longe das teorias e teoremas,
Da política e dos fonemas,
Como um bicho da terra,
Que em si se basta e se encerra,
Confundindo-se na fauna,
Onde seria só mais um ser,
Sem conflitos na alma.

Eu queria saber dançar,
Tocar flauta de bambu,
Escrever cordel e cantoria,
Ao invés dessa complexa poesia.

Mas não, ao invés, inundei-me
De complicadas teorias,
Para tudo tenho explicação,
Matando a doce magia
Que habita cada coração,
E que no meu também habitaria.

Caminhei tanto, para descobrir
Que o preço da caminhada
É a perda do encanto
Porque no fim... Só o nada.

Pedi muito a Deus
E tudo Deus me deu,
Cobrando-me preço caro,
A perda da inocência,
Essa incontinência da dor,
Profunda e permanente,
Torturando corpo e mente.

Pudesse retornar ao princípio
E eu evitaria esse precipício,
O de todos os segredos
Querer dominar,
Reduzido a anônimo pescador,
Talvez namorando o mar.

A dor do pensador
É a dor de todos
Os que sentem dor,
Só que ampliada,
Mais que compartilhada,
Multiplicada.

Ardo-me duplamente,
Pelo que sei
E pelo que não sabem.

Francisco Costa

Rio, 13/11/2016.
Não me peçam comiseração depois,
Armaram-me a alma e a disposição,
Intoxicando-me de raiva e revanche.

Não se pode quieto e calmo, mudo,
O que em si leva a indignação e a dor,
Arrastando-as, fardo incômodo,
No calvário de todos os dias e noites,
Palcos onde se encenarão batalhas.

Ferido sim, mas não mortalmente.
De ferida aberta, mas sem mutilação,
Ainda capaz da insistência e do estoque,
Da cobrança, de empreender a luta.

Não me peçam recuo, parcimônia,
Risco calculado, baionetas caladas.

Trago em mim agora uma bomba
Sem controle e sem pavio, a esmo,
Prestes a semear estragos e ódios,
A me reinaugurar combatente novo,
Trocando musas, sorrisos e versos
Pelo velho e bom combate,
De verdade,
Espantando o que me aflige e mata.

Consola-me saber que não estarei só,
Que o que me rói e corrói,
Como em mim, incomoda a muitos.

Juntos, poderemos ser todos.

Francisco Costa

Rio, 18/04/2016.

DÚVIDAS NA MADRUGADA

(Ouvindo Mozart às três horas)

A religiosidade que em mim se manifesta
É feita de dúvidas e desconfianças,
De inquirir e perquirir, conjecturar,
Num vasto oceano de hipóteses.

Invejo os que têm tudo certinho,
Devidamente ordenado e claro,
Acreditando na divindade de acesso fácil,
Exposta em livro autobiográfico,
Embora redigido por homens.

Entre a passividade de coisa criada
E o ser ativo que complementa a obra
Percorro labirintos de incógnitas,
Fazendo-me ponte entre o declarado,
O que se põe explícito e insofismável,
E as derivações dos meus pensamentos.

As religiões existem como rédeas,
Cordões de contenção, paredes e muros
A serem arrebentados e demolidos,
Até que só restem convicções individuais,
Como outrora, entre os nossos ancestrais.

Nossos sentidos são limitados,
Mais escondem que revelam,
E daí a necessidade da busca fora deles.
Mas como imaginar o inimaginável,
Se o que em mim habita e me conceitua
Me chegou por cada um dos sentidos?

Não vejo o ultravioleta e o infravermelho,
Não ouço os infra e ultra-sons,
Não individualizo odores, se misturados,
Nem sabores, quando juntos,
O que só me mostra parte da realidade.

Como então ousar descortinar verdades,
Se elas me chegam parciais e condicionais,
Do tamanho do que sei, embaladas
Em caixas estanques, empilhadas
De modo aleatório e caótico,
Exigindo-me decifração?

Como, sem acesso ao imediato e simples,
Buscar o que se esconde por trás,
Muito adiante, senão infantilmente,
Fazendo do mundo a minha imagem,
Extensão de mim, mas nos meus limites,
Identificando sem fazer semelhante,
Senão pra mim, pobre crisálida
Sem saber das borboletas?

Diante do infinito e da eternidade,
Somos só um acidente cósmico
De curta e efêmera duração,
Buscando-se infinito e eterno,
O que seria só tédio e cansaço,
Não fosse a existência de um Deus
Justificando o que para mim injustificável.

Entre a alvorada do berço
E o entardecer do túmulo,
Intriga-nos e assusta
A noite que não temos na memória.

Francisco Costa

Rio, 23/10/2016.
A mulher que esperei não veio.
Por onde andará a mulher que espero,
Em que corpo se esconde, disfarçada,
Imune aos meus versos e meu olhar,
Talvez próxima, fingindo-se flor ou luar?

Por décadas eu a procurei dedicado,
Devassando corpos e pensamentos,
Catando indícios, obscuras evidências,
Qualquer coisa capaz de identificá-la.

Em corpos muitos fiz pernoites, acampei,
Hospedei-me voluntário peregrino
Na esperança de encontrá-la para tê-la.

Agora, já no ocaso de mim, mero ancião,
Já não a busco, passivo e acomodado,
Certo de que veio e não vi, distraído,
Quando deveria estar enamorado.

Minhas paixões foram sindicâncias,
Investigações, pesquisas minuciosas
Entre amantes atentas e curiosas,
Vasculhando-me palavras e poemas,
Até descobrirem que não eram elas
As que escondiam em si, dedicadas,
A mulher que esperei em vão, para nada.

Francisco Costa

Rio, 14/11/2016.