segunda-feira, 6 de maio de 2013

O Meu Tesouro (Uma história verídica, em versos, quase poema)

O Meu Tesouro 
(Uma história verídica, em versos, quase poema)
Tenro ainda, edificando-me em carência material e carícias,
mero menino ensaiando passos,
consegui amealhar o meu primeiro tesouro,
minha primeira fortuna de posse exclusiva,
inacessível à partilha porque minha, só minha.

Eu a guardava numa caixinha de madeira,
embalagem dos charutos Suerdick,
presente da vó paterna,
uma velha índia que nunca vi sorrir ou chorar,
só aconselhar e abençoar,
blindada em sabedoria e respeitabilidade.

Nela eu guardava uma pedra de material estranho,
semelhante ao barro, só que de dureza granítica,
com marcas do que se assemelhava a uma folha,
talvez de samambaia, gravada em negro,
como se carimbada por mágicas mãos.

Como ainda lia mal, estava em alfabetização,
ensaiando a aventura das primeiras letras,
não tivera ainda acesso às informações precoces
que me fascinariam vida a fora, diuturnamente:
aquela pedra era um fóssil escrito pelo tempo.

(muitos anos depois, envolvido em verdades outras,
recheado de ciências, religiões e filosofias, questionarei
a memória ancestral que me apontou valor ao que,
para outra criança, seria só uma pedra,
um reles instrumento de caçar passarinhos
ou quebrar telhas e vidraças,
matéria prima para marimbas ou concreto.)

Junto guardava alguns tocos de lápis de cor,
estampas do sabonete Eucalol, algumas figurinhas,
um tubinho de tinta vermelha,
que usava com parcimônia, para não acabar nunca
e mais umas tralhas que não atino mais.

A caixinha ficava enterrada ao pé da cerca,
próximo ao barraco onde guardavam ferramentas.

Logo aconteceu uma tragédia em ato único:
papai chamou um pedreiro, derrubaram a cerca
e construíram um muro, justo sobre a caixinha.

Meu tesouro foi concretado,
sepultado para sempre sob uma calçada,
e tive que me controlar muito,
em muitas ocasiões,
para não meter a marreta e o ponteiro, para resgatá-lo.

Logo me vi na feira, calças curtas ainda, suspensórios,
vendendo revistas usadas e laranjas, legumes e livros,
primeiro degrau da escada que me trouxe até aqui.

Degraus outros seguiram-se: mascate, camelô,
agente penitenciário, recenseador, sindicalista,
radialista... E a universidade: professor.

Perambulei os corredores do poder, iniciei greves,
impedi greves, negociei com senadores e deputados,
os gerentes da gente, os donos de tudo.
Infernizei os que fedem a poderosos, desafiei....
E conheci o cárcere, a sombra da tortura escura,
na fila, para ser lançado de helicóptero no mar.
Providencial Habeas Corpus me permitiu continuar,
para vê-los se irem e me deixar com os meus poemas.

Cansado do malho em ferro frio arrendei uma escola,
pouco mais que casa e meia dúzia de alunos baldios.

Com a determinação de quem vai ao poema
vi-me professor de várias matérias, inspetor de alunos,
servente de pedreiro, pintor, eletricista, capataz,
diretor de escola, cavando com as próprias unhas
em calos e sangue o que antevia. E vi.

E vieram os frutos que se ostentam vazios: patrimônio.

E o menino camelô do tesouro enterrado na cerca
com irreverência se viu reverenciado por pares
em tolos rituais e servis cerimônias, agastado
com tanta tolice ostentada em todos a mim tão iguais.

Até que o irmão mais novo veio me alardear a notícia:
“mamãe vendeu a casa”, e cheio de rugas e netos,
a cabeça grisalhada pela neve do tempo,
o primeiro pensamento: o meu tesouro!

E ninguém entendeu porque chorei em pranto solto,
morto de vontade de trocar todo o conseguido,
pelos moldes sociais invejável tesouro,
por aquele tesouro que não verei jamais.

Francisco Costa
Rio, 02/03/2013

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