O Meu Tesouro
(Uma história verídica, em versos, quase poema)
(Uma história verídica, em versos, quase poema)
Tenro ainda,
edificando-me em carência material e carícias,
mero menino
ensaiando passos,
consegui
amealhar o meu primeiro tesouro,
minha
primeira fortuna de posse exclusiva,
inacessível
à partilha porque minha, só minha.
Eu a
guardava numa caixinha de madeira,
embalagem
dos charutos Suerdick,
presente da
vó paterna,
uma velha
índia que nunca vi sorrir ou chorar,
só aconselhar
e abençoar,
blindada em
sabedoria e respeitabilidade.
Nela eu
guardava uma pedra de material estranho,
semelhante
ao barro, só que de dureza granítica,
com marcas
do que se assemelhava a uma folha,
talvez de
samambaia, gravada em negro,
como se carimbada
por mágicas mãos.
Como ainda
lia mal, estava em alfabetização,
ensaiando a
aventura das primeiras letras,
não tivera
ainda acesso às informações precoces
que me
fascinariam vida a fora, diuturnamente:
aquela pedra
era um fóssil escrito pelo tempo.
(muitos anos
depois, envolvido em verdades outras,
recheado de
ciências, religiões e filosofias, questionarei
a memória
ancestral que me apontou valor ao que,
para outra
criança, seria só uma pedra,
um reles
instrumento de caçar passarinhos
ou quebrar
telhas e vidraças,
matéria
prima para marimbas ou concreto.)
Junto
guardava alguns tocos de lápis de cor,
estampas do
sabonete Eucalol, algumas figurinhas,
um tubinho
de tinta vermelha,
que usava
com parcimônia, para não acabar nunca
e mais umas
tralhas que não atino mais.
A caixinha
ficava enterrada ao pé da cerca,
próximo ao
barraco onde guardavam ferramentas.
Logo
aconteceu uma tragédia em ato único:
papai chamou
um pedreiro, derrubaram a cerca
e
construíram um muro, justo sobre a caixinha.
Meu tesouro
foi concretado,
sepultado
para sempre sob uma calçada,
e tive que
me controlar muito,
em muitas
ocasiões,
para não
meter a marreta e o ponteiro, para resgatá-lo.
Logo me vi
na feira, calças curtas ainda, suspensórios,
vendendo
revistas usadas e laranjas, legumes e livros,
primeiro
degrau da escada que me trouxe até aqui.
Degraus
outros seguiram-se: mascate, camelô,
agente
penitenciário, recenseador, sindicalista,
radialista...
E a universidade: professor.
Perambulei
os corredores do poder, iniciei greves,
impedi
greves, negociei com senadores e deputados,
os gerentes
da gente, os donos de tudo.
Infernizei
os que fedem a poderosos, desafiei....
E conheci o
cárcere, a sombra da tortura escura,
na fila,
para ser lançado de helicóptero no mar.
Providencial
Habeas Corpus me permitiu continuar,
para vê-los
se irem e me deixar com os meus poemas.
Cansado do
malho em ferro frio arrendei uma escola,
pouco mais
que casa e meia dúzia de alunos baldios.
Com a
determinação de quem vai ao poema
vi-me
professor de várias matérias, inspetor de alunos,
servente de
pedreiro, pintor, eletricista, capataz,
diretor de
escola, cavando com as próprias unhas
em calos e
sangue o que antevia. E vi.
E vieram os
frutos que se ostentam vazios: patrimônio.
E o menino
camelô do tesouro enterrado na cerca
com
irreverência se viu reverenciado por pares
em tolos
rituais e servis cerimônias, agastado
com tanta
tolice ostentada em todos a mim tão iguais.
Até que o
irmão mais novo veio me alardear a notícia:
“mamãe
vendeu a casa”, e cheio de rugas e netos,
a cabeça
grisalhada pela neve do tempo,
o primeiro
pensamento: o meu tesouro!
E ninguém
entendeu porque chorei em pranto solto,
morto de
vontade de trocar todo o conseguido,
pelos moldes
sociais invejável tesouro,
por aquele tesouro
que não verei jamais.
Francisco
Costa
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