terça-feira, 14 de maio de 2013

FERA FÚRIA


(Pro meu pai, Pedro Castello Costa,
 um ávido leitor de literatura de cordel,
onde soletrei as minhas primeiras letras)

Seu  moço, o senhor tem um compromisso
E esse compromisso tem que honrar,
O senhor também nasceu homem
E com homens tem que se importar.

Preste atenção neste meu canto
Enquanto me é permitido cantar,
Ele é escrito a fúria e sangue,
É canto feito pra maltratar.

Sou filho de Pedro Castello,
Cabra pequeno porém valente,
Foi à guerra matar gringo,
Ferrar cabo e tenente.

De tudo que me ensinou,
O que mais me marcou, acho,
Foi nunca abaixar a cabeça,
Temer peixeira de macho.

Crescido na bê abado da desgraça,
Tendo este homem por exemplo,
Aprendi a furar fundo e rápido,
Não permitir que me façam graça.

Metade Francisco, metade universo
Fiz-me poeta pra cantar em verso
Toda a vileza desta pobre terra,
Sempre lutando numa torpe guerra.

Seu moço não pense que exagero.
Dentro de mim todo esse ódio fero
Um dia tem que se acabar,
Nem que eu tenha que a todos matar.

Assim como sou Chico,
Severino também podia ser,
Pois se Chico cresci na cidade,
Severino no sertão podia crescer.

E prá me defender da má fama
Vou mostrar a lama pra vosmicê,
Um pouco da miséria nordestina,
Um pedaço do que se tem prá comer.

No chão descampado de fogo
Não brota nem capim tiririca.
Falta chuva, ajuda e lodo,
Por adubo nem titica.

Na vermelha linha do horizonte
Confundem-se chão e firmamento.
Tudo liso, sem nem um monte
No eterno silêncio do sofrimento.

Das pedras medram espinhos,
Nos galhos secos nem um ninho
Das rolas e juritis que voaram
Pr’além e jamais voltaram.

No solo ressequido como linho
Pisam pés descalços com bicheiras,
Nas cumbucas vazias de pirão
Pastam enxames de varejeiras.

A caminho do cemitério,
Sem orações e sem mistério
Segue sempre o mesmo cordão
Levando nos braços um pagão.

Moço, o senhor ainda não imaginou
Que aquele filho poderia ser seu,
Como aquele pai, dizer que já choramingou
Por um filho que de fome já morreu?

Se me permitem continuar,
Vou falar da habitação:
Pobres casas têm pra morar,
Muito pior que barracão.

São casas de barros batidos
Em armações de galhos,
Cheias de buracos e falhos,
Com barbeiros escondidos.

Na aula de geografia a professora
Se esqueceu de explicar:
Aqueles que lá morrem tristes
São tão brasileiros como os de cá.

E nas estatísticas oficiais
Se esquecem de mencionar
Que a subnutrição é demais
Se a gente fala mandam calar.

Me desculpe as rimas pobres,
É a influência do lugar.
Se na gramática dei pernada
É porque gramática não existe lá.

Moço, pense bem e não se envergonhe,
Nunca é tarde prá se acordar.
Tem brasileiro como o senhor
Também querendo estudar.

Mas a solução um dia vem
E em governo não se pode confiar,
Entra ano e sai ano, dia a dia,
E a fome consumindo os de lá.

Ano que vem outra vez tem eleição.
Num partido os que não dão dinheiro,
No outro os que dinheiro não dão.

Aqui termino minha cantilena
Triste e nojenta como a peste.
Triste porque fala de gente,
Nojenta porque é do nordeste.

Não esqueci da religião,
Outrora fonte de fé,
Hoje partido político
Controlado pé ante pé.

Se não gostou pode discordar,
Só não admito é me calar.
Sou filho de Pedro Castello,
Cabra pequeno porém valente.

E se ele matou cabo e tenente,
Não sendo que eu mais macho,
Mato tudo e a todos que aparecerem,
Pois não sou de gente capacho.

Mas um dia, tenho certeza,
O senhor vai comigo concordar,
A faca que ferra boi e onça
Vai bucho de gente também ferrar

Se da mesma água, do mesmo poço
Bebem cavalo, onça, cabra e cobra
Na mesma mesa, no mesmo almoço
Comerão ricos e pobres,
Não haverá sobra.

E o senhor que está aí aparado
Vai se sentir até mais animado
Em saber que o nordeste já não existe,
É pesadelo do passado.

Mas enquanto esse dia não chega
Dedilho as cordas da minha viola,
Vivendo dos carinhos da minha nega,
Comendo com o meu salário esmola.

Me desculpe a ousadia
As senhoras autoridades,
Confesso minha rebeldia,
Sou  cidadão de maioridade.

Por mais que me batam ou ferrem
Não me sentirei desamparado.
O vento quente já me bateu,
Ao solo seco estou ferrado.

Francisco Costa

Nota do Autor:
Este poema-cordel que aqui só está parte,
por questão de espaço e paciência do leitor,
foi escrito e publicado em tempo anormal.
Custou-me um longo depoimento na Polícia Federal.
Aproveito a oportunidade de lembrar a desdita
Para que os jovens permaneçam vigilantes,
E essa história triste não se repita)

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