terça-feira, 7 de maio de 2013

ESPANHOLITA


Existem porradas que não doem logo,
passam ignoradas, despercebidas,
como se nunca viessem a nascer.

Dissimuladas, permanecem anônimas,
esperando que alguém as acorde.

Esquecidas, como se nunca  existido,
de repente começam a crescer,
em gravidez de futuro infortúnio,
a dor do remorso doendo lá dentro,
em lugar impróprio à terapia.

Menino ainda, cinco ou seis anos,
chegaram vizinhos novos na rua,
pai, mãe e filha, de olhos negros
e cabelos idem, magrinha e ágil.

Eram de falar estranho, estrangeiro.
Espanhóis, esclareceram-nos os adultos,
nasceram longe, onde se fala diferente.

Recém chegados, pouco ou nada
sabendo de nossa sintaxe e vocabulário,
permaneciam sempre calados e isolados.

Nós a chamávamos espanholinha,
até que um adulto nos iniciou
na língua materna deles e alteramos,
em versão imediata: espanholita.

Talvez porque apartada de primos,
amigos, parentes, colegas, vizinhos,
espanholita chorava, e chorava,
por qualquer motivo e a toa.

Logo tornou-se saco de pancadas,
alvo de todas as maldades, sadismo
da garotada em exercício de covardia.

Não sei se a menina escondia dos pais,
não sei se os pais se escondiam dos nossos,
acreditando ter aportado na barbárie.

O certo é que nenhuma admoestação
de nenhum adulto para interditar a dor
da espanholita estranha em terra estranha,
amargurando cascudos, tapinhas, beliscões,
quando não chorando a boneca pisoteada.

Só bati uma vez, na verdade a empurrei,
em assistência de um parto de lágrimas,
a minha amiguinha olhando sem entender,
surpreendida, como se dissesse: até você?

Cresci, bati apanhei (mais do que bati),
colecionando raivas que esqueci,
remorsos encarcerados na memória.

E a dor do bater que não foi nada, anos depois
mostrou que existia, leve coceira crescendo,
virando dor e, para mais doer, tumorando,
tornando-se ferida maligna a roer dentro,
bem cá dentro, cada vez mais.

Estou velho, no poente da existência,
e agora, em pleno inventário do que fiz,
do que ficou por fazer, dos arrependimentos,
uma menina de olhinhos negros e cabelos idem,
que fiz chorar, e chorar tão copiosamente,
muito pela decepção, um pouco pela dor,
importunando tanto esse peito cansado, puído,
que hoje, entre o que ainda resta e é missão,
a vontade de encontrar a espanholita
beijar-lhe a testa, e pedir perdão.

Francisco Costa.
Rio, 12/03/2013.

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