Existem
porradas que não doem logo,
passam
ignoradas, despercebidas,
como se
nunca viessem a nascer.
Dissimuladas,
permanecem anônimas,
esperando
que alguém as acorde.
Esquecidas,
como se nunca existido,
de repente
começam a crescer,
em gravidez
de futuro infortúnio,
a dor do
remorso doendo lá dentro,
em lugar
impróprio à terapia.
Menino
ainda, cinco ou seis anos,
chegaram
vizinhos novos na rua,
pai, mãe e
filha, de olhos negros
e cabelos
idem, magrinha e ágil.
Eram de
falar estranho, estrangeiro.
Espanhóis,
esclareceram-nos os adultos,
nasceram
longe, onde se fala diferente.
Recém
chegados, pouco ou nada
sabendo de
nossa sintaxe e vocabulário,
permaneciam
sempre calados e isolados.
Nós a
chamávamos espanholinha,
até que um
adulto nos iniciou
na língua
materna deles e alteramos,
em versão
imediata: espanholita.
Talvez
porque apartada de primos,
amigos,
parentes, colegas, vizinhos,
espanholita
chorava, e chorava,
por qualquer
motivo e a toa.
Logo
tornou-se saco de pancadas,
alvo de
todas as maldades, sadismo
da garotada
em exercício de covardia.
Não sei se a
menina escondia dos pais,
não sei se
os pais se escondiam dos nossos,
acreditando
ter aportado na barbárie.
O certo é
que nenhuma admoestação
de nenhum
adulto para interditar a dor
da
espanholita estranha em terra estranha,
amargurando
cascudos, tapinhas, beliscões,
quando não
chorando a boneca pisoteada.
Só bati uma
vez, na verdade a empurrei,
em
assistência de um parto de lágrimas,
a minha
amiguinha olhando sem entender,
surpreendida,
como se dissesse: até você?
Cresci, bati
apanhei (mais do que bati),
colecionando
raivas que esqueci,
remorsos
encarcerados na memória.
E a dor do
bater que não foi nada, anos depois
mostrou que
existia, leve coceira crescendo,
virando dor
e, para mais doer, tumorando,
tornando-se
ferida maligna a roer dentro,
bem cá
dentro, cada vez mais.
Estou velho,
no poente da existência,
e agora, em
pleno inventário do que fiz,
do que ficou
por fazer, dos arrependimentos,
uma menina
de olhinhos negros e cabelos idem,
que fiz
chorar, e chorar tão copiosamente,
muito pela decepção,
um pouco pela dor,
importunando
tanto esse peito cansado, puído,
que hoje,
entre o que ainda resta e é missão,
a vontade de
encontrar a espanholita
beijar-lhe a
testa, e pedir perdão.
Francisco
Costa.
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